Em cima do palco, em Luanda, há uma acesa discussão conjugal, com uma mulher muito confiante: “Pela primeira vez na história do MPLA, o comité central vai ter 50% de homens, 50% de mulheres. “50%-50% não é possível”, atira o marido, reforçando: “Homem é homem, mulher é gato”. Mas ele não fica sem resposta: “Ai, mulher é gato? Então, tua mãe, que te nasceu, é gato que costuma miar em cima das casas?”
A audiência aplaude e ri. Estamos no VIII Congresso do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), partido que governa o país desde 1975, e este momento de humor na sessão de abertura resume o que importa neste encontro — que só termina no sábado.
Marido: Vocês, nesse vosso congresso, vão discutir o quê, vão falar sobre o quê?
ulher: Olha, meu marido, vamos reafirmar a liderança do nosso presidente e reconfirmar a sua candidatura para as eleições de 2022 (…) Também vamos reforçar a coesão interna no seio do partido.
Marido: É melhor mesmo, porque parece hoje que estão descontentes.
Mulher: Isso é normal, porque mesmo nas nossas casas nem sempre os filhos estão contentes com os pais. Principalmente quando o pai é rigoroso.
Em menos de dez minutos, dois atores, simulando um arrufo de um casal comum, resumiam as mensagens que o MPLA queria transmitir: unidade, normalização das divergências, uma liderança rigorosa e implacável, capacidade de reeleição nas Presidenciais de 2022 e uma política de reforço na paridade dentro do partido.
Mas logo de início, houve uma ausência que se faz notar no Congresso: José Eduardo dos Santos, que em setembro regressara à capital angolana.
“É um homem que se sente ofendido por João Lourenço. Acha que ele próprio e a sua família se converteram num alvo desde a governação do João Lourenço. Tinha a ideia de um compromisso de lealdade de João Lourenço que não foi observado, é um homem ressentido. Além disso, também está bastante diminuído do ponto de vista da saúde. E essa é uma razão forte para não se apresentar dessa forma”, explica ao Observador Xavier de Figueiredo, jornalista especialista em Angola e diretor do Africa Monitor.
Mas a ausência de José Eduardo dos Santos não é entendida como um suave afastamento, nem um momento de conciliação num partido dividido.
“Que o conflito existe não há duvida nenhuma. Quando José Eduardo dos Santos regressou a Angola isso não foi tema, a televisão pública de Angola ignorou olimpicamente a chegada dele, o Jornal de Angola dedicou uma notícia muito breve, e nesse mesmo dia João Lourenço arranjou uma oportunidade para não estar em Luanda. A ideia que há é que nem se encontraram. Que há uma rutura entre os dois não tenho dúvida nenhuma”, continua Figueiredo.
“A presença de José Eduardo dos Santos poderia significar uma tentativa de reconciliação, obviamente. O partido não fala abertamente disto, mas há um grupo de órfãos do Presidente”, reforça ainda Sérgio Calundungo, diretor do Observatório Político e Social de Angola.
Uma das novidades deste Congresso é o alargamento do Comité Central: passou de 497 para 693 membros. Para o diretor do Africa Monitor, este aumento de lugares reflete algum receio por parte do atual presidente. “É classicamente uma medida que se toma quando não se está muito seguro de qual é o sentido de voto das pessoas que fazem parte daquele órgão”.
Com este reforço, a recondução de João Lourenço como líder do partido, que acontece no último dia do Congresso, está praticamente assegurada, até porque é o único candidato.
Outro nome chegou a estar em cima da mesa, o de António Venâncio, mas o militante do MPLA viu a candidatura rejeitada. Ainda tentou, em resposta, impugnar o Congresso, mas o Tribunal Constitucional de Angola não autorizou.
“É um dado adquirido que, só com um candidato, João Lourenço será eleito presidente. Mas a questão é se a continuidade destas práticas, em pleno século XXI, ainda fazem sentido, com partidos tão fortes, com mais de três milhões de militantes, e que não têm mais candidatos”, questiona Sérgio Calundungo.
Mas a eleição de um novo comité central resultou também na saída dos dois filhos do Presidente emérito, Filomeno dos Santos e Tchizé dos Santos, avança o Expresso. Ambos estão envolvidos em casos de alegada corrupção.
Filomeno dos Santos foi condenado a oito anos de prisão depois de ter sido acusado do desvio de 500 milhões de dólares. Tchizé dos Santos, feroz opositora de João Lourenço, chegou a ter uma conta bancária bloqueada por suspeitas de que estaria a usar o sistema português para camuflar a eventual origem ilícita de verbas. Já Isabel dos Santos nunca pertencera às estruturas do MPLA.
E os recados do atual Presidente foram dados. Na sessão de abertura do Congresso, Lourenço, que é candidato único à liderança do partido, voltou a sublinhar a importância do combate à corrupção no país: “Neste dia 09 de dezembro, consagrado como dia de luta contra a corrupção, reiteramos a determinação da sociedade, do executivo e da justiça angolana em combater a corrupção e do nosso empenho de recuperar os ativos ilicitamente adquiridos onde quer que se encontrem”.
Mas é precisamente este plano de combate à corrupção que mais gerou insatisfação, dentro e fora do partido. “Aqueles que se transformaram em alvo são todos ligados a José Eduardo dos Santos. A ideia que há é que é um combate à corrupção seletivo, a adversários. Uma das coisas que mais se fala contra ele é mesmo o falhanço do combate à corrupção. Os donos desses ativos são sobretudo pessoas familiares de José Eduardo dos Santos ou próximos dele”, resume Xavier de Figueiredo.
E se, por estes dias, com grande grau de certeza, será reeleito o líder do partido, a apreensão é alguma quanto à reeleição de Lourenço nas presidenciais de agosto. Uma sondagem da AngoBarómetro coloca o líder da UNITA, Adalberto Costa Júnior, como favorito nas eleições de 2022, com quase o dobro das intenções de voto de João Lourenço: 53,4% contra 30,1%
“MPLA está num momento interno bastante difícil. O país vai na quarta ou quinta recessão económica, só tem conhecido recessões, isso tem um peso muito grande em eleições. O nível de pobreza está a crescer, o nível de manifestações cresceu. Tudo isto vai pesar nas próximas eleições”
“Os eleitores em agosto de 2022 são chamado mais uma vez a exercer o seu direito de cidadania, para decidirem os destinos do país através do seu voto. O nosso apelo vai no sentido de todos os cidadãos angolanos, maiores de idade, regularizarem a sua situação de eleitores”, apelou o chefe de Estado, durante o discurso de abertura, esta quinta-feira.
O diretor do Observatório Político e Social de Angola acredita que as presidenciais do próximo ano vão ser “as mais disputadas” desde 1992. “A UNITA tem um candidato muito forte, Adalberto Costa Júnior. MPLA está num momento interno bastante difícil. O país vai na quarta ou quinta recessão económica, só tem conhecido recessões, isso tem um peso muito grande em eleições. O nível de pobreza está a crescer, o nível de manifestações cresceu. Tudo isto vai pesar nas próximas eleições”, sublinha Calundungo.
Também Xavier de Figueiredo acredita que a UNITA goza hoje de grande popularidade em Angola, mas salienta que há algo que “não podemos perder de vista”: “Angola é um Estado bastante autoritário. (O MPLA) é um partido teoricamente democrático, mas controla completamente o Estado. Não aceitam a ideia de ceder poder, e têm o Estado todo que pode interferir e controlar as leis.” Por esse motivo, diz, “é cedo”, para dizer que a UNITA está em condições de ganhar as eleições.
“Angola é um Estado bastante autoritário. (O MPLA) é um partido teoricamente democrático, mas controla completamente o Estado. Não aceitam a ideia de ceder poder, e têm o Estado todo que pode interferir e controlar as leis.”
É este, então, o cenário atual, de acordo com os especialistas: um Presidente que enfrenta ameaças internas, com divisões dentro do próprio partido, e externas, com a oposição cada vez mais forte.
No discurso de abertura do Congresso, cujo mote é “Por uma Angola mais Desenvolvida, Democrática e Inclusiva”, João Lourenço deu nota positiva à resposta à pandemia, dizendo que governo foi capaz de “conduzir da melhor forma possível” os trabalhos relacionados com a aquisição de ventiladores, capacidade de testagem e disponibilização de vacinas.
“Pela primeira vez na história da política angolana, um partido alcança a paridade de género no seu órgão máximo de direção, e esse partido é o nosso glorioso MPLA. A partir de agora nada mais será como antes, subimos a fasquia bem alto, que, com certeza, terá uma forte influência em toda a sociedade”
O Presidente sublinhou também sucessos no combate à pobreza e às alterações climáticas, mas foi na promoção da igualdade de género que mais insistiu. “No que se refere à paridade de género e à promoção dos jovens, o partido deu um passo inédito”, afirmou. “Pela primeira vez na história da política angolana, um partido alcança a paridade de género no seu órgão máximo de direção, e esse partido é o nosso glorioso MPLA. A partir de agora nada mais será como antes, subimos a fasquia bem alto, que, com certeza, terá uma forte influência em toda a sociedade”, frisou.
Além de mais mulheres, o MPLA vai também ter mais jovens: 35% do Comité Central será composto por membros com idades entre os 18 e 35 anos.
“Assumimos o compromisso de promover as mulheres e jovens angolanos, reservando-lhes um lugar de destaque nos órgãos de direção do nosso partido nos diferentes escalões e nas diferentes instituições do poder em Angola, no Executivo, na Assembleia Nacional e na sociedade em geral”, destacou Lourenço.
O diretor do Observatório Político e Social de Angola aplaude a ideia, até porque, diz, “a maior parte dos angolanos são do sexo feminino”. Mas deixa a ressalva: “Apesar de necessário não é suficiente. Uma coisa é paridade no comité central… Não é claro que se vai refletir em políticas públicas que defendam os interesses das mulheres.”
A mulher que esteve em palco a discutir com o marido colocou a fasquia bem alta quanto a isso — desafiou João Lourenço a ter uma vice-presidente. Talvez não fosse “o fim do mundo”, como lhe respondeu o homem, mas sim um reinício do partido.