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Diferença entre João Lourenço e José Eduardo dos Santos: “João Lourenço não tem estratégia”, diz pesquisadora

João Lourenço conquista lealdades do mesmo modo que José Eduardo dos Santos, mas “não tem estratégia”. À espreita, avisa a investigadora, está uma crise social porque há fome como não se via desde a guerra civil.

“Em Angola, governa-se nas sombras”

A alta do petróleo oferece uma almofada de segurança ao MPLA para enfrentar as eleições. João Lourenço conta com os recursos de um Estado securitário, mas uma situação dramática de desigualdade e pobreza ameaça o regime, afirma a investigadora Paula Cristina Roque, que nasceu em Joanesburgo e, em 2017, doutorou-se em Oxford, com uma tese sobre os estados paralelos rebeldes da UNITA e do Movimento de Libertação do Sul do Sudão.

O poder em Angola exerce-se nas sombras, segundo o estudo que acaba de publicar. O que é governar nas sombras?

É uma situação em que o sistema presidencialista e centralista detém na realidade um poder abusivo. O poder devia ser dividido legalmente entre o executivo, o parlamento e a instância judicial, mas as decisões são tomadas e impostas nas sombras. Assim, o Estado dispensa a transparência de procedimentos e exime-se de responder a pressões políticas e sociais graças às receitas dos hidrocarbonetos que dispensam uma base fiscal alargada. Há estruturas paralelas de poder, mas governa-se nas sombras.

O medo tem os olhos grandes, reza um provérbio russo que cita ao caraterizar o Estado angolano. Onde quer chegar?

Num Estado securitário tudo é encarado como questão de segurança nacional. O ADN do MPLA e do poder vertical da presidência exclui a alternância no poder. Só o MPLA é garante da estabilidade e da paz. Noutros estados securitários, como o Ruanda ou a Eritreia, para referir casos africanos, tudo é também questão de segurança e, em consequência, questão de sobrevivência, questão existencial. O medo tem os olhos grandes porque por todo o lado nos deparamos com esse medo. Todos os riscos e perigos surgem desmesurados, aumentados. O modo de governo do MPLA, particularmente em tempos de paz, assumiu uma forma securitária que não era necessária. A UNITA foi completamente dizimada, tornou-se numa força política residual em 2002. Em 1974-75 e de novo em 1992-93 ocorreu, de facto, um conflito de vida e de morte e Angola, ao contrário de muitos países africanos, não teve um só movimento de libertação, e MPLA, UNITA e FNLA foram incapazes de congregar todos os grupos étnicos.

Há, assim, uma insegurança inerente no MPLA que, tal como a UNITA, nunca conseguiu cativar o outro lado. Subsistem clivagens políticas enraizadas e rígidas. O MPLA fez, contudo, uma opção correta. Nunca quis movimentos étnicos em Angola. Para um partido se registar tinha de ter assinaturas em todas as 18 províncias. Opunha-se à teoria dos grandes números de Jonas Savimbi, que foi acusado de tribalismo. Nós, ovimbundos e outras populações do Sul e do Leste, ovambos, ambundos, côkwes, somos a grande maioria e juntos conquistaremos o poder – era a tese de Savimbi. Não era, creio, um tribalista ovimbundo ao asseverar que os grandes números eram capazes de derrubar um poder bélico superior apoiado por soviéticos e cubanos. Isto durante a primeira fase da guerra civil até 1988; depois, entre 1992-2002 seguiu uma lógica totalmente diferente.

O petróleo gerou pobreza em Angola e a pobreza e a fome aumentaram exponencialmente com a Covid

O Estado securitário de José Eduardo dos Santos mudou alguma coisa desde a chegada ao poder de João Lourenço?

João Lourenço aprendeu muito com José Eduardo e, desde 2017, seguiu o mesmo caminho: promoveu pessoas que não contam com bases de apoio próprias porque o poder que terão será apenas garantido pela proximidade ao Presidente. Assim se garante a lealdade nas nomeações para os centros nevrálgicos que governam na sombra através da Casa Civil e de Segurança, os serviços de segurança e informações.

As Forças Armadas são, por sua vez, um pilar do regime e num inquérito de 2019 do Afrobarometer surgiam como a instituição em que a população depositava maior confiança, a seguir aos líderes religiosos e às autoridades tradicionais. O envolvimento nos negócios das chefias militares, o controlo político e a vigilância dos serviços de segurança evitam que surja potencial para um golpe e centros de poder alternativos. Governar nas sombras um Estado securitário permitiu manter a estabilidade, mas criou a maior das fragilidades: a desigualdade e a pobreza. O MPLA governou para enriquecer alguns, contendo o ris- co de contestação dos excluídos e marginalizados.

Há sinais de maior autoritarismo?

Não diria autoritarismo. À medida que o governo se sente mais ameaçado aumentam as respostas securitárias, mas, agora, tem maior peso uma estratégia de desarticulação da oposição usando os tribunais e isso não é uma estratégia securitária. Contudo, o general Francisco Furtado, chefe da Casa de Segurança, que tradicionalmente tutela os serviços de informação, declarou no início deste mês, nas comemorações dos 30 anos das Forças Armadas, que a oposição, ao levantar suspeitas de fraude eleitoral, visa criar um “clima de intimidação e terror”. Ou seja, a forma de fazer política da oposição é intimidação e terror e a nossa resposta é preservar e repor a estabilidade. E como se faz isso? Pela força e segurança. Isto é uma estratégia securitária.

Como se desarticula a oposição?

Tentando cooptá-los, dividi-los e neutralizar a sua capacidade política e de mobilização. A UNITA está ocupada com a realização de um congresso até 4 de dezembro porque o Tribunal Constitucional não reconheceu a legitimidade de Alberto Costa Júnior como seu presidente. Surgirão mais processos judiciais possivelmente, mas, sem excluir a possibilidade de atos descontrolados, não há sinais de violência, apesar de algumas queixas de intimidação.

A conjuntura foi ingrata para os planos de João Lourenço?

Das promessas eleitorais de 2017 constava tirar da pobreza 3 milhões de angolanos. João Lourenço herdara uma situação dramática e tinha a noção de que era preciso mudar para preservar o poder. Tentou encetar reformas económicas, mas apanhou com a queda do petróleo e a pandemia. A situação piorou dramaticamente. Sacrificou algumas pessoas no partido para renovar a imagem de Angola internacionalmente e conseguir apoio popular. Foi muito corajoso ainda que o combate cirúrgico à corrupção servisse determinados fins políticos. Quis desmontar o clã cleptocrático do antecessor, mas, como dizia um antigo assessor de Eduardo dos Santos, se Lourenço se empenhasse numa luta real contra a corrupção não tinha governo.

A economia política do sistema, clientelar e nepotista, vive de rendas e é estruturalmente corrupta. Foi possível recuperar 4,6 mil milhões de dólares na campanha anticorrupção, mas desmontar estas estruturas implica uma reforma política profunda e esse não era o seu objetivo. Ele fez uma abertura política, com momentos de consensualidade muito importantes. Para a UNITA foi muito importante o enterro de Savimbi em Lopitanga, no Bié, em julho de 2019. Tiveram lugar os encontros com representantes da sociedade civil como Luaty Beirão e Rafael Marques, mas o impacto desses gestos esgotou-se.

Apesar do empréstimo de 3,7 mil milhões de dólares do FMI em 2018, de uma desvalorização de 75% do kwanza, de novas privatizações, a economia está estagnada e o governo só arrisca uma previsão de crescimento de 2,4% para 2022. Como é que o MPLA gere esta crise?

A crise que se adivinha não será uma crise política, mas sim uma crise social porque as condições económicas são desastrosas. Há fome e desespero como não víamos desde os tempos da guerra. Há risco de uma convulsão social. Já existia no tempo de Eduardo dos Santos, mas agora assistimos a protestos em Luanda juntando milhares de pessoas. “Isto acabou para o MPLA. A paciência estratégica do povo acabou”, dizia uma mulher ao filmar uma manifestação em Luanda.

Não [há risco de desagregação do regime]. Há manifestações a exigir emprego, eleições livres e justas, a estabilidade da cesta básica
Há risco de desagregação do regime?

Não. Há manifestações a exigir emprego, reformas, eleições livres e justas, a estabilidade da cesta básica, com 13 produtos essenciais, como farinhas de milho e trigo, óleo alimentar, leite em pó, arroz, feijão, sabão, cujos preços triplicaram desde 2017. São manifestações de quem não tem nada a perder e chegou ao limite, sem enquadramento dos partidos de oposição, de régulos, ou sindicatos, e é importante que se diga: ninguém quer instabilidade em Angola, mais mortes e massacres. Ninguém quer violência em qualquer das suas formas seja morrer à fome ou a tiro.

A alta do petróleo dará para ganhar as eleições de agosto?

Eu diria que, se as eleições fossem justas, o MPLA estaria em risco de perder. Já perdeu o voto popular de Luanda e em algumas províncias. Agora se é suficiente para a oposição ganhar, não sei. Programas de desenvolvimento e criação de emprego, microcrédito para jovens, etc., não avançaram. Não foram criadas bases geradoras de diversificação económica e geradoras de crescimento. A produção de petróleo foi de 1,1 milhões barris/dia no primeiro semestre, mas devido à falta de investimento não ultrapassará 1 milhão no final da década.

O petróleo gerou pobreza em Angola e a pobreza e a fome aumentaram exponencialmente com a Covid, que já causou cerca de 1.700 óbitos. Há 1,3 milhões de pessoas em risco de fome na Huíla, Namibe e Cunene após sete anos de seca. A Igreja Católica, as igrejas protestantes e as autoridades tradicionais são quem mais alerta para a fome que o Presidente ignorou no discurso do mês passado à Assembleia Geral da ONU. O MPLA pensa a curto prazo: quer ganhar as eleições sem ter grandes problemas e depois se verá. Esta é a grande diferença entre João Lourenço e o Eduardo dos Santos: o João Lourenço não tem estratégia. Ele está a ser reativo e não proativo e tem de começar a ser proativo.

Como vê o futuro próximo?

Muito complicado. Um poder cada vez mais ameaçado, um povo cada vez mais aguerrido e uma oposição cada vez mais legitimada.

Paula Cristina Roque

Cofundou do South Sudan Centre for Strategic and Policy Studies. Foi analista do International Crisis Group (Bruxelas) e do Institute for Security Studies (Pretória) sobre questões de segurança em África.

 

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