O Governo angolano entregou hoje os três primeiros certificados de óbito a familiares de vítimas de conflito político entre 11 de novembro de 1975 e 04 de abril de 2002, num ato que marca o perdão e a reconciliação.
A cerimónia, na data que marca 44 anos do 27 de maio de 1977, conhecido em Angola como de uma alegada tentativa de golpe de Estado, teve início no cemitério de Santa Ana, onde foi depositada uma coroa de flores no túmulo de soldado desconhecido e efetuado um culto ecuménico.
Três certificados de óbito foram entregues pelo coordenador da Comissão de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos (Civicop), Francisco Queiroz, aos familiares de Inocêncio Leão Leite, Antoninho Armando Simão e Joaquim Manuel Fernando.
O coordenador da Civicop e também ministro da Justiça e Direitos Humanos considerou o dia como “um momento muito especial” da história de Angola, lembrando o pedido de desculpas e perdão do Presidente João Lourenço pelo Estado angolano “para com as vítimas que pereceram nos conflitos políticos em geral”.
“Aqueles que tendo sobrevivido ainda sofrem os efeitos desses males e fez uma menção muito especial ao conflito do 27 de maio de 1977”, salientou.
Francisco Queiroz referiu que o ato de hoje é sequência da missão traçada por João Lourenço, “com todo o seu espírito de humanista, que vem dando mostras na sua governação”.
O coordenador da Civicop disse que o processo de entrega dos certificados de óbito vai continuar e vai ser definido um programa para a atribuição sistemática às famílias das vítimas que pereceram no 27 de maio e em todos os conflitos políticos desde a independência até ao dia da paz.
“Com base nessas orientações também reforçaremos o trabalho da Civicop, que nestes dois anos consistiu em aproximar partes desavindas, opiniões, verdades que cada um apresentava sobre os problemas que ocorreram durante o conflito político”, prosseguiu Francisco Queiroz.
O ato contou com a presença de sobreviventes e órfãos deste período, governantes angolanos, entidades religiosas e sociedade civil.
Do cemitério para a Praça da Independência foi igualmente depositada uma coroa de flores na estátua do primeiro Presidente de Angola, António Agostinho Neto, pelo presidente da Fundação 27 de Maio, Silva Mateus, e por um ex-FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola) pela parte governamental, Alexandre Bastos “brigadeiro Sacha”.
Segundo o coordenador da comissão, “chegou-se a um momento de paz de espírito, de consenso, entre todos, conseguiu-se o ambiente de tranquilidade, de paz, de reconciliação, de abraço e de perdão”.
Francisco Queiroz sublinhou que o trabalho vai agora continuar numa dimensão mais concreta, cumprindo as orientações do Presidente angolano, com a localização dos corpos dos que morreram para se proceder à entrega às famílias, de acordo com a lista apresentada publicamente e outra a ser elaborada e enriquecida, para que se possa contemplar o maior número possível de pessoas.
“Queria apelar a todos os membros desta comissão e dos partidos políticos que sempre trabalharam connosco, as igrejas, as organizações da sociedade civil e a todos os angolanos e angolanas para que continuemos unidos nesta luta, porque, na verdade, precisamos de construir um novo tipo de relacionamento”, disse Queiroz.
O responsável salientou que a homenagem às vítimas do 27 de maio não visa esquecer a data, mas sim “lembrar e manifestar o compromisso com o propósito de nunca mais acontecer nenhum 27 de maio no país”.
O presidente da Fundação 27 de Maio, Silva Mateus, que integra a Civicop, disse que reconhecido os erros cometidos pelo Estado angolano, as partes desavindas num gesto de irmandade e de perdão, estiveram presentes num ato conjunto a honrar os mortos.
“Iniciando assim um novo ciclo de entendimento de perdão e de reconciliação, porém, a reconciliação nacional que se pretende é um ato sério, que pressupõe o derrube de barreiras ainda existentes, ter confiança mútua entre as partes envolvidas e espírito consultivo, perdoar e abraçar o irmão, mas nunca, jamais, esquecer o passado e com a vontade sincera de não voltar a cometê-lo”, frisou.
Já o “brigadeiro Sacha” afirmou que o 27 de maio de 1977 foi um episódio que atingiu o povo angolano e manchou profundamente a história de Angola, reconhecendo que “houve excessos” nessa data e a importância do evento de hoje.
Em declarações à agência Lusa, Sebastião Amaral, sobrevivente do 27 de maio, considerou bem-vindo o pedido de desculpas apresentado, quarta-feira, pelo Presidente João Lourenço, para se acabar com as mágoas existentes.
“Nós não vamos esquecer o 27 de maio, mas vamos perdoar, porque somos os ofendidos”, disse Sebastião Amaral, na altura dos acontecimentos membro do Estado-Maior da FAPA/DAA [Força Aérea Popular de Angola/Defesa Aérea e Antiaérea] e chefe do posto de comando, que esteve três anos preso, sendo um dos últimos a sair da cadeia de São Nicolau, e que perdeu vários amigos no conflito.
Por seu turno, Bibiana Leão, uma das três pessoas hoje contempladas na entrega de certificados de óbito, manifestou-se “alegre” com o gesto do Governo, lembrando que o seu irmão, polícia e chefe da escolta na província do Bengo, desapareceu em 2001.
Moisés Sotto-Mayor, coordenador da comissão dos órfãos do 27 de maio, familiar de Alberto Francisco Sotto-Mayor e Avela Francisco Sotto-Mayor, ambos vítimas desse processo, considerou o pronunciamento de João Lourenço um ato de tolerância por tudo quanto aconteceu e poderia vir a acontecer se não fossem resolvidas a tempo estas questões.
“Muitas pessoas viviam recalcadas e esses recalcamentos, muitos não ligados diretamente ao 27 de maio, machucavam e frustravam as pessoas por desespero de verem os seus familiares e ente queridos desaparecidos sem nenhuma palavra de conforto da parte do Estado”, notou, considerando que o pedido de perdão “consolou muitas famílias e deu ânimo, mobilizando mais pessoas para a harmonia nacional”.
Em 27 de maio de 1977, uma alegada tentativa de golpe de Estado, numa operação aparentemente liderada por Nito Alves — então ex-ministro do Interior desde a independência (11 de novembro de 1975) até outubro de 1976 –, foi violentamente reprimida pelo regime de Agostinho Neto.
Seis dias antes, em 21 de maio, o MPLA expulsara Nito Alves do partido, o que levou o antigo ministro e vários apoiantes a invadirem a prisão de Luanda para libertar outros simpatizantes, assumindo paralelamente, o controlo da estação da rádio nacional, ficando conhecido como “fracionistas”.
As tropas leais a Agostinho Neto, com apoio de militares cubanos, acabaram por estabelecer a ordem e prenderem os revoltosos, seguindo-se, depois o que ficou conhecido como “purga”, com a eliminação das fações, tendo sido mortas cerca de 30 mil pessoas, na maior parte sem qualquer ligação a Nito Alves, tal como afirma a Amnistia Internacional em vários relatórios.
Em abril de 2019, o Presidente angolano ordenou a criação de uma comissão (a Civicop), para elaborar um plano geral de homenagem às vítimas dos conflitos políticos que ocorreram em Angola entre 11 de novembro de 1975 e 04 de abril de 2002 (fim da guerra civil).