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EUA: O foco do trabalho anticorrupção devia ser misto: “responsabilização pessoal” e “recuperação de activos”

Apreensões & Confusões

A recuperação de activos tem-se tornado a principal finalidade da luta contra a corrupção em Angola. Já deixámos a nota de que esta não nos parece a melhor forma de concretizar esse combate, uma vez que o foco na recuperação de activos acaba por se transformar num estímulo para aumentar, ainda mais, os valores da corrupção: em vez de se desviar cem milhões de dólares, desviam-se duzentos milhões de dólares, porque se prevê que cem milhões de dólares sejam para devolver posteriormente. O foco do trabalho anticorrupção devia ser misto: responsabilização pessoal e recuperação de activos.

Contudo, a verdade é que o único julgamento de um político relevante até agora e transitado em julgado foi o do antigo ministro Augusto Tomás, estando ainda em fase de recurso os casos de José Filomeno dos Santos / Valter Filipe e de Manuel Rabelais. Isto significado uma coisa somente: que as notícias de apreensões e congelamento de bens são permanentes, enquanto os resultados dos julgamentos tardam.

Tal facto merece uma primeira nota: tem de existir informação transparente sobre o decurso dos processos judiciais nos tribunais. Era vivamente aconselhável que houvesse um portal digital público no Tribunal Supremo, onde fosse possível consultar o estado de cada processo judicial relevante no combate à corrupção, assinalando se o processo já foi distribuído, se está para despacho, para julgamento, para vista, enfim, qual o ponto da situação exacta do mesmo. Esta disfuncionalidade e falta de transparência do aparelho judicial faz suspeitar de que os processos contra a corrupção chegam a um beco sem saída e se tornam uma trapalhada quando passam para o domínio do poder judicial, havendo uma disfunção entre as intenções do poder executivo e as capacidades do poder judicial.

Enquanto os processos seguem a sua tramitação nos tribunais, o fulcro da actividade tem sido a recuperação de activos. Portanto, centremo-nos nas apreensões e nos congelamentos, já que estas acções se tornaram o núcleo da luta contra a corrupção.

Podemos dividir a recuperação de activos em três grandes tipos.

Em primeiro lugar, a perda de bens definitiva a favor do Estado ou de terceiros. Esta situação, geralmente, ocorre apenas no final de um processo judicial. No caso angolano, a questão ainda se coloca pouco, uma vez que os processos estão no início e não no fim.

Em segundo lugar, as apreensões ou os arrestos ocorridos em processos cíveis ou criminais. Neste caso, ao contrário do primeiro, estamos apenas perante uma recuperação provisória enquanto dura o processo, podendo no fim, de acordo com a decisão judicial, o bem ser devolvido ao seu detentor inicial – se absolvido – ou perdido a favor do Estado ou terceiro. Quase todos os casos conhecidos se enquadram nesta segunda situação: o “congelamento” cível dos bens de Isabel dos Santos ou a apreensão em sede criminal de bens de Carlos São Vicente, entre outros. Já veremos mais à frente que a utilização deste expediente acaba por ser muito problemática.

Em terceiro lugar, temos uma originalidade, que é a doação. Aparentemente, alguns possíveis arguidos em processos criminais, para evitar que o processo avance ou para promoverem o seu arquivamento, entregam, de forma definitiva, alguns activos ao Estado. Nesta situação encontraram-se os supermercados Kero e a TV Zimbo. Embora supostamente realizada de livre vontade e de maneira definitiva, esta forma de recuperação de activos também levanta dúvidas.

Vamos ver com alguma atenção os tipos referidos em segundo e terceiro lugar, e perceber porque não constituem, na nossa opinião, as melhores formas para resolver situações de recuperação de activos.

Nos últimos dias, tem havido muita celeuma em relação à utilização dos prédios de Carlos São Vicente. Foram-lhe apreendidos alguns bens imóveis e designado o Cofre Geral de Justiça como fiel depositário. Entretanto, o Cofre, enquanto fiel depositário, verificou que os prédios se estão a degradar e, nessa medida, achou que a solução para evitar essa degradação seria afectar esses prédios a actividades úteis, como o Instituto Nacional de Oftalmologia, o Instituto Nacional de Emergência Médica ou o Instituto Nacional de Sangue.

Não aprofundamos aqui a discussão sobre se esta afectação pode ocorrer, embora, resumidamente, entendamos que sim, pois o Ministério Público, no caso de perder o processo e Carlos São Vicente ser absolvido, teria de entregar no final do processo judicial os imóveis em estado equivalente ao que estavam quando apreendidos, podendo, se tal não for possível, indemnizar o arguido. Contudo, esta é uma mera opinião e a contrária também existe e pode prevalecer em tribunal.

Por isso, a questão que se coloca é mais precisa, e refere-se exactamente à discussão e variada interpretação dos poderes do fiel depositário de activos apreendidos numa situação provisória. Cria-se uma situação de total incerteza, pouco benéfica para qualquer dos interessados, pois só desvalorizará os bens. O facto é que os imóveis de São Vicente, como outros apreendidos noutros processos, correm o risco de se degradar devido à situação provisória em que se encontram.

Estamos diante de um problema muito prático. Não sendo a lei clara, encontrando-se os activos numa situação precária, a probabilidade de desvalorizarem e se degradarem é enorme. Algo tem de ser feito para evitar esse desfecho funesto. No final, podem não valer nada, não beneficiando nem o Estado, nem o arguido.

Um pouco diferente, mas também levantando muitas perplexidades, é a situação referida como o terceiro tipo, em que há uma doação de alguns activos por parte dos arguidos. Como referimos, é o que parece ter acontecido com os supermercados Kero e a TV Zimbo. Levantam-se duas interrogações. A primeira é sobre o efeito destas entregas nos processos criminais que eventualmente decorram contra os arguidos que fazem as entregas. Os processos são arquivados e estes ficam em liberdade definitivamente? Ou os processos podem continuar, havendo clemência por parte das autoridades? Não parece claro. A isto acresce a possibilidade de os arguidos apenas estarem a entregar activos pouco valiosos, meramente simbólicos, ou poderem continuar a beneficiar desses activos, por exemplo, apresentando facturas como fornecedores ou prestadores de serviços. Também aqui há que haver clarificações, para evitar confusões futuras.

Apontamos e elencamos aqui várias soluções para as situações mencionadas.

A primeira regra a adoptar é a da transparência e informação pública. É fundamental que estes processos, na medida da salvaguarda da sua eficácia, sejam públicos e legitimados pelo conhecimento informado. Assim, a Procuradoria-Geral da República devia – tal como o Tribunal Supremo em relação aos processos judiciais em curso – estabelecer um site de consulta pública onde estivessem listados todos os bens apreendidos, o estado do processo a que dizem respeito e a sua utilização. É importante dar confiança aos cidadãos e explicar o que se está a passar na luta contra a corrupção.

Uma segunda necessidade diz respeito à capacidade de rastreamento. A discussão sobre a quem pertencem determinados activos torna-se muitas vezes o objecto do processo, uns dizendo que certos bens não são seus, outros referindo que têm os seus valores todos no estrangeiro. É importante saber ao que se vai e ter uma noção clara dos objectivos das iniciativas judiciárias.

Estas duas primeiras medidas, complementadas por aquela referente à publicitação do estado dos processos no Tribunal Supremo, são necessárias para aumentar e consolidar a confiança pública na luta contra a corrupção. São, por isso, propostas viradas para a legitimação social e cívica do combate à corrupção.

Mas, a acrescer a estas propostas de confiança pública, é imperativo o recurso a meios expeditos para resolver as situações. Meios que evitem a incerteza e permitam uma actuação racional e eficaz do Estado. Na verdade, naquilo que respeita às apreensões e aos congelamentos provisórios de unidades de negócio ou bens degradáveis, é evidente que a incerteza é “má para o negócio”, e temos de optar por soluções mais consistentes, para protecção do interesse útil e social dos activos.

Nestes termos, a melhor alternativa é escolher directamente a nacionalização dos activos. Quando o Estado sentir que tem de apreender activos valiosos que se podem degradar ao longo do tempo, a melhor via é nacionalizá-los. É evidente que à nacionalização corresponde uma indemnização. Esta seria arbitrada, mas só paga no final do processo judicial em que o proprietário dos bens fosse arguido. Se fosse absolvido, receberia a indemnização, mas não já o activo que havia sido nacionalizado; se fosse condenado, não receberia a indemnização nem o activo. Note-se que esta solução de nacionalização com postergação da indemnização para final de processo só seria aplicada a grandes casos, com activos muito relevantes e degradáveis ao longo do tempo. Esta seria a solução para criar certezas e manter o aviamento comercial das entidades.

Naquilo que diz respeito às doações de arguidos, urge fazer uma lei de enquadramento que clarifique quais as consequências dessas entregas relativamente aos processos criminais, a forma de valorizar os activos e as relações directas ou indirectas que os arguidos podem manter com as suas antigas empresas, como fornecedores, prestadores de serviços, etc. Com estas medidas, seria possível criar quadros mais certos e inspiradores de confiança pública no combate à corrupção.

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