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EUA: Os “facilitadores” que ajudaram a família dos Santos a acumular fortuna

De empresários a contadores, passando por consultores e advogados, a rede de relações que a mulher mais rica da África construiu para proteger seu império.
Esta reportagem faz parte do Luanda Leaks, projeto do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, o ICIJ, com sede em Washington, DC. O Luanda Leaks reúne 120 profissionais do ICIJ e mais 36 veículos de 20 países, que investigaram negócios da empresária Isabel dos Santos, a mulher mais rica da África. No Brasil, participam do projeto a revista piauí, a Agência Pública e o site Poder360. Esta reportagem é de Ben Hallman, Kyra Gurney, Scilla Alecci e Max de Haldevang.
 
Posando na entrada de uma festa repleta de estrelas no Festival de Cinema de Cannes, Sharon Stone, ícone dos anos 1990, exibiu sua pulseira única. Era um grande hipopótamo ao redor do braço, com rubis no lugar dos olhos, narinas de safira e dentes de diamantes brancos. Seu corpo era coberto de diamantes marrons, cinzas e brancos.
 
O adereço deslumbrante era uma criação da De Grisogono, joalheria de luxo suíça e anfitriã do evento exclusivo, realizado no Hotel du Cap-Eden-Roc, na Riviera Francesa.
 
A De Grisogono já tinha dado festas em Cannes antes. Mas esta, em maio de 2013, foi especialmente suntuosa, com show de fogos de artifício e orquestra de câmara para embalar os convidados enquanto apreciavam as vistas do litoral. Financiava as festividades o governo de Angola, país com uma das mais altas taxas de pobreza do mundo.
 
A empresa de comércio de diamantes de Angola, conhecida como Sodiam, e um empresário congolês casado com Isabel dos Santos, filha do então presidente do país, haviam adquirido o controle da joalheria em dificuldades financeiras no ano anterior. Seus novos diretores incluíam ex-funcionários do gigante Boston Consulting Group, que havia ajudado brevemente a administrar a joalheria e esperava que a festa ajudasse a interromper um longo declínio nas vendas. Stone foi a “embaixadora” daquele ano, uma estrela que ainda brilhava o suficiente para atrair os ricos e famosos a comprar um berloque da Grisogono.
 
O plano não funcionou. A De Grisogono vendeu apenas US$ 5,6 milhões de produtos em transações privadas em 2013, muito aquém de sua meta de US$ 33 milhões, e assumiu cada vez mais dívidas. A companhia estatal de diamantes de Angola agora teme que seu investimento de mais de US$ 120 milhões se perca definitivamente.
 
A história de como o dinheiro público angolano veio a ser usado para agradar o 1% da Riviera Francesa vai além de uma estratégia comercial duvidosa que deu errado. Ela oferece uma janela para o setor de serviços profissionais pouco regulamentado, que ao longo dos anos se tornou a pedra angular de uma próspera indústria offshore que promove lavagem de dinheiro, evasão fiscal e corrupção pública em todo o mundo.
 
Isabel dos Santos fez sua fortuna pegando um pedaço da riqueza de Angola, muitas vezes por cortesia de decretos do governo assinados por seu pai, o presidente. Ela também se beneficiou de informações privilegiadas, empréstimos preferenciais e contratos alimentados por dinheiro público, segundo revelou a investigação do Luanda Leaks, conduzida pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ na sigla em inglês) e 36 parceiros da mídia. No Brasil, participam do projeto a revista piauí, o Poder360 e a Agência Pública. Nas últimas duas décadas, Isabel adquiriu participações valiosas em todas as importantes indústrias angolanas, incluindo petróleo, diamantes, telecomunicações e bancos.
 
Isabel dos Santos e seu marido, Sindika Dokolo, construíram um império de mais de 400 empresas e subsidiárias em 41 países, incluindo pelo menos 94 em jurisdições sigilosas como Malta, Ilhas Maurício e Hong Kong. Essas empresas adquiriram ativos, como imóveis de alto valor em Londres e Lisboa, e compraram participações em outras empresas, incluindo a joalheria De Grisogono.
 
Consultores, contadores e advogados prestaram apoio vital em cada etapa do processo, de acordo com o exame do ICIJ sobre acervo de mais de 715 mil e-mails, contratos e outros documentos.
 
Dos escritórios da loja no pequeno paraíso fiscal de Malta às salas de conferência na Suíça e em Angola, Boston Consulting, PwC (anteriormente PricewaterhouseCoopers), KPMG e outras grandes empresas ajudaram a sustentar o império de Santos durante anos. Essas relações favoráveis continuaram muito tempo depois que vários bancos ocidentais bloquearam Santos em meio a indagações sobre a fonte de sua riqueza, de acordo com a análise do ICIJ dos documentos obtidos pelo Luanda Leaks.
 
Os contadores desconsideraram os sinais que, segundo especialistas, deveriam ter acionado alarmes. Advogados de renomados escritórios de advocacia portugueses ajudaram a criar empresas de fachada e a movimentar dinheiro para Santos e Dokolo. Os consultores os assessoraram sobre formas de administrar seus negócios e evitar impostos.
 
As instituições financeiras estão sujeitas a requisitos regulatórios rigorosos, os quais, mesmo que nem sempre sejam aplicados, tendem a fazê-las prestar muita atenção em sua clientela. As empresas profissionais enfrentam muito menos escrutínio. Como tal, é menos provável que elas recusem um cliente rico e arriscado.
 
“A estrutura de incentivos torna ainda muito fácil e lucrativo, e suficientemente seguro, para elas se envolverem nesse negócio sujo”, disse Markus Meinzer, diretor de sigilo financeiro na Tax Justice Network, grupo que estuda sonegação de impostos e regulamentação financeira.
 
O improvável investimento do governo angolano em uma joalheria pode ser atribuído a uma série de transações que, em 2012, silenciosamente distribuíram milhões de dólares por meio de empresas de fachada em Malta e nas Ilhas Virgens Britânicas.
 
As transações, segundo o ICIJ, deram ao marido de Santos, Dokolo, o controle total da joalheria suíça, apesar de investimento substancial da agência angolana.
 
Os documentos dos Luanda Leaks foram compartilhados com o ICIJ pela Plataforma de Proteção de Denunciantes na África, ou PPLAAF, grupo de defesa de ativistas sediado em Paris. Eles revelam uma história notável de beneficiamento próprio e especulação por uma empresária cuja vasta fortuna e narrativa atraente compraram o acesso a instituições ocidentais de prestígio, como o Fórum Econômico Mundial e a London Business School.
 
No fim de dezembro, depois que o ICIJ enviou perguntas ao governo angolano, um tribunal do país congelou os ativos de Santos e Dokolo. O governo angolano disse ao tribunal que o casal e um parceiro de negócios foram responsáveis por prejuízos estatais de US$ 1,1 bilhão.
 
Por meio de seus advogados, Santos e Dokolo negaram irregularidades. Dokolo disse que era um empreendedor de sucesso e alvo de uma campanha com motivações políticas em Angola.
 
Isabel dos Santos recusou os pedidos de entrevista do ICIJ. Mas em uma entrevista à BBC Africa, que fez várias perguntas em nome do ICIJ, Santos chamou o inquérito de “perseguição política”.
 
Ela acusou o atual governo angolano de visar sua família para desviar a atenção dos problemas econômicos do país. “Minhas participações são comerciais. Não há recursos provenientes de contratos públicos ou dinheiro que foi desviado de recursos públicos”, afirmou.
 
Isabel dos Santos participaria da reunião do Fórum Econômico Mundial de 2020 em Davos, na Suíça, depois que a Unitel, empresa de telefonia móvel da qual ela é parcialmente proprietária, foi nomeada parceira associada, em 2019. Após o congelamento de ativos, no entanto, o Fórum Econômico Mundial disse que Santos não iria mais à reunião anual.
 
Primeira-filha de Angola
 
Isabel dos Santos nasceu no Azerbaijão em 1973, filha de José Eduardo dos Santos, que viria a ser presidente angolano, e Tatiana Kukanova, uma russa que o pai conheceu e com quem se casou enquanto estudava engenharia de petróleo.
 
Isabel dos Santos formou-se no King’s College London nos anos 1990, em engenharia elétrica e administração de empresas. Depois trabalhou na Coopers & Lybrand, firma de contabilidade que mais tarde se tornou parte da PwC, e como gerente de projetos em uma obra de saneamento em Luanda.
 
Ela se tornou a mulher mais rica da África, com patrimônio líquido estimado em pelo menos US$ 2 bilhões e participações em telecomunicações, bancos e várias outras indústrias.
 
Em discursos e entrevistas, Santos se promove como bilionária e uma figura inspiradora, cuja grande riqueza é atribuível às sua perícia nos negócios. “Não sou financiada por dinheiro do Estado ou por fundos públicos”, disse ela ao Wall Street Journal.
 
Mas a narrativa de self-made woman de Santos nunca resistiu a um exame acurado.
 
Seu pai foi presidente de Angola, país devastado pela pobreza e pela guerra civil, durante 38 anos (1979 a 2017), e seu governo foi amplamente considerado corrupto. Em 2013, Angola figurou quase no fim de um índice de corrupção publicado pela Transparência Internacional. Uma enxurrada de histórias, incluindo uma investigação da revista Forbes, também publicada em 2013, vinculou a fortuna de Isabel dos Santos a ajuda do governo e contratos preferenciais, incluindo a participação em uma grande empresa de telecomunicações.
 
José Eduardo dos Santos não respondeu às perguntas do ICIJ. Em uma carta aberta, ele rejeitou alegações de irregularidades, dizendo que nunca transferiu dinheiro do governo para si mesmo “ou para qualquer outra entidade”.
 
“Como o diabo da cruz”
 
Os bancos ocidentais estavam prestando atenção, como mostram documentos do ICIJ. Após a crise financeira global de 2008 e uma série de escândalos de lavagem de dinheiro, os reguladores vigiavam de perto as instituições de crédito, e Santos e seu marido se encaixavam no perfil de clientes que muitas entidades decidiram que não podiam mais apoiar.
 
Um importante órgão regulador bancário dos Estados Unidos emitiu ordem de cessação e desistência para o Citibank, uma subsidiária do Citigroup, em 2012, depois de descobrir que o banco não havia conseguido identificar clientes de risco e impedir transferências ilegais de dinheiro. Casos destacados contra o JPMorgan Chase e o HSBC na mesma época levaram à contratação de milhares de agentes de conformidade para limpar listas de pessoas ligadas à corrupção política ou atividade criminosa.
 
Mais tarde, em 2012, outra subsidiária do Citigroup, o Citigroup Global Markets Limited, saiu de um acordo de financiamento com a holding holandesa Amorim Energia BV. O Barclays Bank fez o mesmo em 2013. Ambos estavam reagindo às preocupações sobre os acionistas da empresa, incluindo a Sonangol, que é a companhia estatal de petróleo de Angola, e a Exem Energy BV, empresa de propriedade de Dokolo, segundo mostram documentos. Depois que a Amorim Energia ameaçou uma ação legal, o Citigroup Global Markets concordou em pagar US$ 15 milhões como parte de um acordo confidencial. O Citigroup e o Barclays se recusaram a fazer comentários para esta reportagem.
 
O Santander, importante banco espanhol, classificou Santos como uma “pessoa politicamente exposta” – termo que se aplica a funcionários públicos e seus familiares – e se recusou a trabalhar com ela, indicam os documentos. Pessoas politicamente expostas, conhecidas em finanças pela sigla em inglês, “PEPs”, são consideradas clientes de risco porque podem abusar de suas posições para se envolver em suborno, lavagem de dinheiro e outras formas de corrupção.
 
“Esses caras ouvem falar de Isabel e correm como o diabo da cruz“, escreveu um gerente de negócios de Santos sobre o banco Santander em e-mail de 2014 a um colega.
 
Até o Deutsche Bank, que foi multado em mais de US$ 600 milhões por não interromper um esquema de lavagem de dinheiro na Rússia, bloqueou tentativas do marido de Santos de transferir dinheiro, mostram os e-mails. (O Deutsche Bank se recusou a comentar. Um porta-voz disse que o banco monitora cuidadosamente os riscos relacionados a pessoas politicamente expostas.)
 
Mas contadores, consultores e outros assessores profissionais não se intimidaram.
 
Cada uma das quatro grandes empresas de contabilidade trabalhou para as empresas de Santos muito depois de vários bancos terem rompido os laços. A Deloitte atuou como auditora da Finstar, empresa angolana de TV via satélite pertencente em parte a Santos, e a Ernst & Young fez o mesmo com a ZOPT, companhia que Santos usa em sua participação na NOS, importante provedora de TV a cabo e Internet em Portugal. A KPMG atuou como auditora de duas empresas na rede de varejo de Santos e foi consultora da Urbinveste, empresa de gerenciamento de projetos de Santos.
 
Entre as quatro grandes consultorias, a PwC desempenhou o papel mais importante no império de Santos, prestando serviços de contabilidade e auditoria a empresas ligadas a ela e a seu marido em Malta, na Suíça e na Holanda. A PwC também prestou consultoria tributária e financeira a empresas angolanas pertencentes ou parcialmente pertencentes ao casal. As empresas da rede global da PwC faturaram mais de US$ 1,28 milhão por esse trabalho, de 2012 a 2017, constatou uma análise do ICIJ, incluindo mais de US$ 900 mil cobrados das empresas incorporadas no centro financeiro offshore de Malta.
 
A PwC não respondeu a perguntas detalhadas sobre seu trabalho para empresas ligadas a Santos, citando restrições de confidencialidade, mas disse que “tomou medidas para encerrar qualquer trabalho em andamento” para entidades controladas por integrantes da família Santos.
 
“Nós nos esforçamos para manter os mais altos padrões profissionais na PwC, e estabelecemos expectativas de comportamento ético consistente de todas as empresas da PwC em nossa rede global“, afirmou a empresa, em comunicado. “Em resposta às alegações muito sérias e preocupantes levantadas, iniciamos imediatamente uma investigação e estamos trabalhando para avaliar minuciosamente os fatos e concluir nossa investigação.”
 
Deloitte, Ernst & Young e KPMG também citaram restrições de confidencialidade ao se recusar a responder a perguntas específicas sobre seus trabalhos. As empresas disseram ter procedimentos de triagem rigorosos para clientes potenciais. A Deloitte e a KPMG disseram que revisam os clientes anualmente; a EY Portugal (que integra a Ernst & Young) disse que revisa seus procedimentos de aceitação de clientes todos os anos para garantir que eles cumpram as leis vigentes.
 
A KPMG disse que realiza diligências adicionais para clientes de auditoria em Angola, o que inclui o exame da equipe forense da empresa.
 
Vigiando os vigias
 
Os contadores desempenham uma função crítica de fiscalização, com o objetivo de obrigar as empresas a serem verdadeiras sobre suas finanças. Feitas corretamente, as auditorias fornecem aos fundos públicos de pensão e a outros investidores informações cruciais sobre como as empresas são gerenciadas e se é seguro investir nelas.
 
Quando os contadores falham, as consequências podem ser catastróficas.
 
Assim como as agências de classificação de crédito que deram altas notas a títulos hipotecários defeituosos vendidos por seus clientes em Wall Street, as Big Four tiveram problemas por colocar os lucros à frente de suas obrigações profissionais.
 
Um escândalo de fraude na Enron no início dos anos 2000 derrubou a gigante de energia e seu auditor, Arthur Andersen. Cada uma das quatro grandes empresas de consultoria já teve seus próprios tropeços, incluindo alegações de ajudar os clientes a cometer ou encobrir irregularidades.
 
Mas, devido ao seu papel subsidiário no sistema financeiro e a uma carga regulatória menos rigorosa que a de bancos e outros atores, os contadores, em sua maior parte, conseguiram escapar da visão do público. Um processo da Justiça de Nova York, por exemplo, alegou que a Ernst & Young ajudou a esconder problemas no Lehman Brothers que desencadearam a crise financeira global de 2008, e a Câmara dos Lordes britânica criticou toda a classe contábil do Reino Unido como “complacente”. Essas manchas, no entanto, se perderam na turbulência da grande recessão. (A Ernst & Young aceitou um acordo de US$ 10 milhões, mas não admitiu irregularidades.)
 
“Os contadores tenderam a passar despercebidos”, disse Nate Sibley, pesquisador que estuda políticas anticorrupção no Instituto Hudson, com sede em Washington.
 
Os Estados Unidos, que impuseram aos bancos algumas das mais duras leis contra lavagem de dinheiro, não possuem leis federais que exijam que os contadores examinem clientes em potencial ou denunciem atividades suspeitas às autoridades policiais.
 
O Instituto Norte-Americano de Contadores Públicos Certificados, a maior associação de contadores do mundo, emitiu diretrizes para orientar os membros a avaliar os clientes, mas não há evidências de que os contadores dos EUA em geral “façam mais perguntas sobre os clientes do que o absolutamente necessário”, de acordo com a Força-Tarefa de Ação Financeira (Gafi), organização de combate à lavagem de dinheiro de 37 países-membros.
 
O principal órgão regulador dos EUA, o Conselho de Supervisão de Contabilidade de Empresas Públicas, organização sem fins lucrativos criada pelo Congresso em 2002, tem autoridade para supervisionar auditorias de empresas norte-americanas de capital aberto. Os críticos dizem que o conselho de supervisão não foi agressivo o suficiente no policiamento das Quatro Grandes. Uma investigação recente do Projeto de Supervisão Governamental, grupo de fiscalização apartidário, constatou que nos últimos 16 anos o conselho identificou 808 auditorias defeituosas realizadas pelas Quatro Grandes, mas apresentou apenas 18 casos de processo legal.
 
As Big Four gastaram muito para influenciar a regulamentação. Ao todo, as empresas aplicaram quase US$ 90 milhões em lobby na última década, segundo dados compilados pelo Centro para Políticas Responsáveis. Mais recentemente, elas lutaram contra um projeto de lei que tornaria públicos os procedimentos disciplinares do conselho supervisor contra empresas de contabilidade. Atualmente, o conselho é obrigado a manter confidenciais os processos disciplinares até que sua decisão seja revisada pela Comissão de Valores Mobiliários ou após o período de revisão.
 
Aplicação desigual na Europa
 
No papel, as regras da União Europeia são muito mais rígidas. A UE exige que os contadores examinem os clientes e alertem as autoridades nacionais se suspeitarem que os fundos de um cliente “são produto de atividade criminosa”. Assim como os bancos, as empresas de contabilidade precisam registrar um relatório de atividades suspeitas se acreditarem que um cliente está lavando dinheiro. A UE inclui Malta, onde muitas empresas pertencentes a Santos e seu marido estão incorporadas.
 
De acordo com as regras da UE, os executivos seniores devem aprovar decisões das firmas de contabilidade para inscrever pessoas politicamente expostas, e as empresas devem adotar “medidas adequadas” para garantir que a origem do dinheiro de um cliente seja legítima. A verificação pode incluir a consulta a reportagens, verificação a bancos de dados comerciais e estudos do Fundo Monetário Internacional ou do Banco Mundial. Esse nível de escrutínio deve seguir por todo o relacionamento comercial.
 
Mas pesquisas mostram que a conformidade é irregular. Em pelo menos 10 países da União Europeia, contadores apresentaram menos de 10 relatórios de transações suspeitas em 2015, segundo estudo da Comissão Europeia. Os bancos de muitos desses países apresentaram milhares de relatórios no mesmo período.
 
Enquanto isso, outras pesquisas descobriram que os contadores, intencionalmente ou não, muitas vezes facilitam a lavagem de dinheiro. Uma análise recente de mais de 400 casos de corrupção e lavagem de dinheiro, conduzida pelo capítulo da Transparência Internacional no Reino Unido, documentou o envolvimento de centenas de consultores profissionais, incluindo 62 empresas de contabilidade do país.
 
“Sem a assistência dessas pessoas, esses esquemas de corrupção e a lavagem de dinheiro que daí resulta não seriam possíveis”, disse ao ICIJ Ben Cowdock, um dos pesquisadores que trabalharam no relatório.
 
Alguns países da UE tentaram reprimir essa atividade. A Dinamarca está investigando as operações da Ernst & Young lá, depois que a empresa supostamente falhou em relatar sinais de alerta às autoridades durante a auditoria do Danske Bank, que está envolvido num escândalo de lavagem de dinheiro. (A EY Denmark disse à Bloomberg News que “reportou conforme necessário.”)
 
Em outros países da UE, entretanto, agências e órgãos profissionais encarregados de controlar os contadores parecem ter feito pouco para garantir o cumprimento das leis contra lavagem de dinheiro.
 
Além disso, grande parte do trabalho das Big Four ocorre fora do alcance dos reguladores ocidentais. Embora sediada nas principais cidades ocidentais, a indústria opera em um modelo de franquia no qual as redes globais de empresas afiliadas compartilham a mesma marca, mas são geralmente entidades legais independentes, vinculadas apenas pelas leis locais, na maioria dos casos.
 
“Embora elas se apresentem como empresas globais, só usam a palavra ‘global’ quando querem ganhar negócios”, disse Prem Sikka, professor de contabilidade na Universidade de Sheffield (Reino Unido). “Quando se trata de responsabilidade, suas reivindicações sobre a globalização desaparecem, e então elas dizem que são uma rede frouxa de empresas nacionais – mesmo tendo um website global, um conselho global.”
 
Em 2018, o Gafi examinou de perto como os criminosos escondem seus ativos para lavar dinheiro e sonegar impostos. Analistas descobriram que intermediários profissionais, incluindo contadores, desempenharam papel fundamental na maioria dos 106 casos estudados.
 
“Os provedores de serviços profissionais aumentam significativamente a capacidade dos criminosos de se envolver em sofisticados esquemas de lavagem de dinheiro para ocultar, acumular e movimentar volumes de riqueza ilícita”, diz o relatório do Gafi.
 
Comprando credibilidade
 
Em entrevistas, Isabel dos Santos indicou seus relacionamentos com grandes empresas de consultoria como validação de que sua riqueza é legítima. Em outubro, ela disse à agência de notícias portuguesa Lusa que havia sido cuidadosamente examinada para trabalhar com várias entidades, incluindo “consultorias que estão entre as cinco maiores do mundo”.
 
As empresas de consultoria estão sujeitas a ainda menos requisitos legais para avaliar seus clientes do que os contadores. Nos Estados Unidos e na União Europeia, elas não estão sujeitas a nenhuma regulamentação específica contra o setor de lavagem de dinheiro.
 
Isso deixa pouco mais do que a ameaça de danos à reputação para orientar seu comportamento.
 
McKinsey & Company, Boston Consulting e Booz Allen Hamilton continuaram seus relacionamentos com o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, após o assassinato do jornalista saudita Jamal Khashoggi, segundo informações da imprensa, apesar do suposto envolvimento do príncipe herdeiro. A McKinsey também trabalhou para outros governos autoritários, incluindo o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan.
 
Os documentos do Luanda Leaks oferecem informações sobre as relações entre consultores e os negócios de Santos que eles aconselharam.
 
Em 2016, a McKinsey criou um plano estratégico para a Efacec Power Solutions, fabricante portuguesa de equipamentos de energia elétrica, na qual Santos tinha participação majoritária.
 
A PwC sugeriu maneiras criativas de reduzir impostos. Em 2017, por exemplo, os consultores da PwC disseram a um grupo de comércio varejista de Santos chamado Grupo Condis que poderia tirar proveito de taxas tributárias “muito competitivas“, “potencialmente entre 0% e 5%”, incorporando uma holding em centro financeiro offshore como Malta ou Cingapura. A empresa também assessorou a Ciminvest, empresa de Santos com participação em uma produtora de cimento angolana, no pagamento de empréstimos e distribuição de dividendos.
 
De 2010 a 2016, a Boston Consulting enviou faturas de pelo menos US$ 4,3 milhões a empresas pertencentes ou parcialmente pertencentes a Santos e Dokolo, concluiu o ICIJ, incluindo mais de US$ 3,5 milhões por um subcontrato da Wise Intelligence Solutions Limited, empresa maltesa de propriedade do casal. O governo angolano havia concedido à Wise um contrato no valor de US$ 9,3 milhões em 2015 para ajudá-la a reestruturar a estatal de petróleo Sonangol. A Wise também subcontratou a PwC, que cobrou US$ 273 mil por seu trabalho no projeto.
 
Por meio de seus advogados, Santos disse que o governo angolano buscou seu envolvimento no projeto “porque ela é uma das poucas angolanas com experiência substancial em negócios internacionais”. Santos também negou receber vantagens fiscais por operar em empresas estrangeiras ou no exterior.
 
Uma porta-voz da Boston Consulting disse que os sócios seniores da empresa “revisam regularmente o tipo de trabalho realizado – antes de ser executado e durante a entrega”.
 
“Em Angola, revisamos as estruturas e os contratos de pagamento, como fazemos em todos os projetos, para garantir o cumprimento das políticas estabelecidas e evitar a corrupção e outros riscos”, disse ela.
 
Em resposta às perguntas do ICIJ, a McKinsey disse que seu relacionamento com a Efacec começou antes que Santos se tornasse acionista. “A McKinsey normalmente serve à administração de empresas, não a indivíduos ou acionistas”, acrescentou um porta-voz em e-mail.
 
De Grisogono: um negócio vantajoso
 
Durante mais de duas décadas, a joalheria De Grisogono vendeu relógios, anéis, pulseiras e outros itens de luxo para a elite mundial em butiques de Nova York, Paris e mais de uma dúzia de outras cidades.
 
Seu fundador, Fawaz Gruosi, que foi vendedor em outras joalherias de luxo, fazia questão de dar festas que atraíam Naomi Campbell, Heidi Klum e Ivana Trump. Mas seu impressionante Rolodex não foi suficiente para fazer a De Grisogono prosperar. As vendas caíram após a crise financeira de 2008, e a empresa lutou com uma carga crescente de dívidas.
 
Em 2012, a salvação veio de um par improvável. Sodiam, o braço comercial da companhia estatal angolana de diamantes, e o marido de Santos, Dokolo, adquiriram o controle acionário da De Grisogono. Gruosi mantinha uma participação minoritária.
 
Documentos e e-mails obtidos pelo ICIJ revelam que os termos da aquisição foram enormemente favoráveis a Dokolo. O acordo lhe deu o “controle total da administração” da joalheria, de acordo com 1 rascunho de contrato de acionistas. Dokolo também recebeu uma “taxa de sucesso” de aproximadamente US$ 4 milhões, sacada do Estado angolano, por organizar o acordo que o deixou no comando.
 
A transação funcionou assim: a Sodiam e a Shell Investments BV, de propriedade de Dokolo, montaram uma 3ª empresa, a Victoria Holding, em Malta. A Victoria Holding tornou-se o maior investidor da Victoria Limited, outra empresa de fachada maltesa. A Victoria Limited tornou-se o investidor majoritário da De Grisogono.
 
Registros indicam que a Sodiam, então sob a influência do pai de Santos, inicialmente forneceu US$ 45 milhões para liquidar a dívida da De Grisogono e adquirir ações da joalheria em dificuldades. Parte do dinheiro também foi usada para pagar a “taxa de sucesso” a uma das empresas offshore de Dokolo nas Ilhas Virgens Britânicas, chamada Almerk International Limited.
 
Por meio de seus advogados, Dokolo disse que investiu US$ 115 milhões iniciais na joalheria e que mais tarde investiu significativamente mais. Ele disse que recebeu a taxa de sucesso, que reinvestiu na empresa, pelas “complexas negociações bem-sucedidas e pela estruturação da aquisição”.
 
“A visão estratégica para a aquisição da De Grisogono, prevista pelo Sr. Dokolo, era alcançar uma integração vertical da indústria de diamantes de Angola e criar um negócio de valor agregado em toda a cadeia de valor, da mineração ao polimento e às vendas no varejo”, disseram advogados de Dokolo em resposta a perguntas do ICIJ.
 
A Sodiam continuou emprestando dinheiro para a joalheria após a aquisição. Ao todo, de acordo com uma carta de 2016 que a Sodiam enviou aos contadores, ela bombeou mais de US$ 120 milhões –dinheiro que a própria empresa estatal havia emprestado. Os registros mostram que a Sodiam emprestou pelo menos US$ 98 milhões a uma taxa de juros de 9% do Banco BIC em Angola, do qual Santos é proprietária parcial.
 
Sob nova direção, a joalheria contratou consultores da Boston Consulting por vários meses e depois contratou vários deles para os principais cargos de liderança. De Grisogono nomeou como CEO o líder do projeto da Boston Consulting, John Leitão, em 2013, e como presidente Elmar Wiederin, que havia sido o principal contato da Boston Consulting com a joalheria, em 2015.
 
Em uma entrevista a parceiros do ICIJ no jornal The New York Times, Leitão caracterizou o papel da Boston Consulting na joalheria como “gerenciamento na sombra”. (A Boston Consulting contesta isso e afirma que a empresa trabalhou apenas em 3 projetos específicos.)
 
O tempo todo a De Grisogono esbanjava dinheiro. A empresa acumulou dívidas enormes, incluindo os empréstimos da Sodiam, enquanto continuava dando festas luxuosas no Festival de Cannes. Leitão não se desculpou por gastar muito em festas. “Para expandir os negócios, você faz muito barulho“, disse ele. “Todo mundo quer ir às suas festas.”
 
Em 2016, a De Grisogono havia demitido funcionários em Genebra, Nova York e Londres. Ela se esforçou para pagar fornecedores, praticamente todos os que perderam a confiança na joalheria, disse um gerente sênior da empresa.
 
“Estou surpreso que nossa alta gerência não tenha previsto esses problemas“, reclamou Gruosi, fundador e sócio minoritário da De Grisogono, em e-mail de 2015. Ele deixou a empresa no início de 2019.
 
Em resposta às perguntas do ICIJ, Gruosi disse que não tinha informações sobre a estrutura corporativa ou financeira da empresa porque seu papel na nova sociedade se restringia ao de diretor de criação.
 
Leitão, ex-CEO da De Grisogono, disse ao The New York Times que os problemas financeiros da empresa foram exacerbados pelas sanções [dos EUA] contra a Rússia e a queda nos preços do petróleo, que atingiram os bolsos dos clientes russos e do Oriente Médio. Se a joalheria tivesse tido sucesso, disse ele, seus acionistas teriam feito uma fortuna.
 
A De Grisogono se recusou a comentar. Wiederin disse que as regras de confidencialidade o impediam de responder a perguntas sobre as finanças da empresa.
 
Contabilidade final
 
Os contadores da Victoria Holding e da Victoria Limited, empresas maltesas com participação majoritária na De Grisogono, parecem não ter visto os sinais de alerta em seus balanços financeiros.
 
Em 2013, o escritório da PwC em Malta elaborou demonstrações financeiras para as empresas que cobrem o ano civil de 2012. Os e-mails mostram que Daniel Difesa, contador da PwC, perguntou aos consultores financeiros de Santos na Fidequity, empresa de serviços administrativos, sobre a Almerk, empresa de fachada nas Ilhas Virgens Britânicas de Dokolo, que recebeu uma “taxa de sucesso” de US$ 4 milhões. A Fidequity desempenhou papel central nas operações das empresas, incluindo a coordenação com contadores e advogados, para grande parte do império de Santos.
 
A Difesa queria saber se Almerk era uma “parte relacionada”, ou seja, ligada aos acionistas das empresas de fachada maltesas. O administrador da Fidequity, Antonio Rodrigues, respondeu que não sabia – embora as comunicações internas indiquem que ele sabia muito bem que Dokolo era dono da Almerk.
 
Com base nos registros analisados pelo ICIJ, parece que a PwC aceitou a resposta e não se aprofundou.
 
O ICIJ compartilhou documentos e trocas de e-mails relacionados à preparação pela PwC dos balanços financeiros de 2012, que a empresa também auditou, com 4 especialistas: um em combate à lavagem de dinheiro, um contador forense, um ex-auditor e um ex-investigador aduaneiro dos EUA. Todos citaram como suspeita a “taxa de sucesso” de US$ 4 milhões paga à Almerk.
 
“Pagar taxas de consultoria enormes e duvidosas a empresas anônimas em jurisdições sigilosas deveria disparar todos os alarmes”, disse Christoph Trautvetter, contador forense baseado em Berlim.
 
Não está claro se a PwC denunciou o sinal de alerta às autoridades maltesas. A PwC não respondeu a perguntas detalhadas sobre seu trabalho para a Victoria Holding e a Victoria Limited, citando restrições de confidencialidade.
 
Difesa, que não trabalha mais para a PwC, não respondeu a vários pedidos de comentários. O código de conduta da PwC, que se aplica a suas firmas afiliadas em todo o mundo, instrui os funcionários a conhecer a identidade de seus clientes e a aderir aos padrões de combate à lavagem de dinheiro. “Onde suspeitamos de comportamento criminoso, tomamos as medidas apropriadas”, diz o código.
 
Rodrigues e outros administradores da Fidequity não responderam a diversos pedidos de manifestação.
 
Robert Mazur, especialista em lavagem de dinheiro e ex-agente federal dos Estados Unidos, disse que, com base nos documentos que analisou, a PwC e a Fidequity “deveriam ter considerado seriamente” a apresentação de um relatório de atividades suspeitas.
 
Mazur, que se fez passar por lavador de dinheiro do cartel colombiano de Pablo Escobar na década de 1980, identificou a “taxa de sucesso” paga à Almerk como um sinal de alerta por causa do sigilo em torno dos acionistas da empresa e da natureza “intangível” dos serviços que supostamente prestava.
 
“Nas últimas décadas, esse tipo de pagamentos costumava ser arranjado como cobertura de pagamentos relacionados à corrupção e/ou atividade ilegal”, afirmou.
 
Os registros mostram que a PwC continuou como auditora da Victoria Holding e da Victoria Limited. A PwC conduziu a auditoria da Victoria Limited em 2016, que foi apresentada ao Registro de Empresas de Malta em 2018. A partir de 17 de janeiro, a empresa ainda estava listada como auditora de ambas as empresas nos registros de empresas de Malta.
 
Em outubro, os parceiros de mídia do ICIJ entrevistaram o presidente da Sodiam, Eugênio Pereira Bravo da Rosa, na capital de Angola, Luanda.
 
Bravo da Rosa, nomeado para a empresa estatal de diamantes em novembro de 2017, disse que a Sodiam “não lucrou nem 1 dólar” com seu investimento na De Grisogono. Ele criticou o acordo que colocou Dokolo no comando da joalheria e deixou a Sodiam sem cargo de gerência.
 
“É estranho”, disse Bravo da Rosa. “Não acredito que uma pessoa inicie uma empresa e deixe seu sócio administrar o negócio com poder total para tomar todas as decisões.”
 
Quando a Sodiam pagar os empréstimos que tomou para participar do negócio, disse ele, já terá perdido mais de US$ 200 milhões. A Sodiam diz que está reembolsando o Banco BIC, mas não recuperou seu investimento na De Grisogono. O Banco BIC não respondeu a perguntas.
 
Dokolo contestou esse número e disse à mídia que recentemente entrou com um processo contra a Sodiam em um tribunal arbitral em Londres, acusando a empresa estatal de diamantes de destruir o valor de seu investimento na De Grisogono. Ele alega que a Sodiam roubou documentos e violou acordos de confidencialidade.
 
As perdas da Sodiam no empreendimento da De Grisogono foram citadas como uma das justificativas para a Justiça angolana congelar os ativos de Dokolo.
 
A Sodiam, que em 2017 anunciou a intenção de alienar sua participação na De Grisogono, ainda está tentando descobrir o que aconteceu, disse Bravo da Rosa.
 
“Essa é a pergunta que nos fazemos constantemente“, disse ele. “O que foi feito do dinheiro?”
 
 
Contribuíram para esta reportagem Sylvain Besson, Jacob Borg, Douglas Dalby, Will Fitzgibbon, Sydney Freedberg, Micael Pereira and Delphine Reuter
 
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

 

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