Um enorme cemitério de navios, 45 minutos a norte de Luanda, tornou-se num postal icónico de Angola, procurado por turistas e fotógrafos amadores em busca do melhor ângulo para retratar uma paisagem que tem tanto de fascinante como de decadente
Mas para a comunidade piscatória do Sarrico, que convive com os gigantes tombados e semi-submersos na praia de Santiago, o cenário nada tem de agradável devido ao impacto negativo sobre a pesca.
Por isso, muitos passaram a complementar esta atividade com a venda de sucata, desmantelando aos poucos as carcaças dos barcos como forma de aumentar os magros rendimentos.
Uma situação que parece ter os dias contados, depois de o governo angolano ter anunciado, em meados de abril, um concurso para a limpeza e remoção de embarcações, navios e outros engenhos marítimos no litoral das províncias de Luanda e Bengo.
“Isto é uma catástrofe, não prejudica só o mar, mas também a saúde”, queixa-se José Sebastião dos Santos.
O morador do Sarico diz que os banhistas chegaram a frequentar a baía, mas “deixaram de vir” por causa da pandemia, que levou à interdição das praias, mas também por que o mar está “cheio de resíduos”.
“Isto prejudica os nossos filhos que tomam banho, os marinheiros. Além disso, os barcos vieram estragar muitas redes, não estamos a conseguir trabalhar devidamente, não estamos a conseguir navegar. Todos os sítios que davam para pescarmos, agora já não dá por que está tudo ocupado com navios. É um grave problema para nós”, desabafa.
Sabe que alguns locais estão envolvidos no negócio da sucata, mas afirma que os principais beneficiários vêm de fora.
“São de outros bairros, vêm tirar a sucata para fazer meios de sobrevivência, agora nós temos dificuldades por que o pescado está difícil e (estão) sempre a deitar aqui navios. Está a chegar a época do cacimbo, não sei o que será de nós”, resigna-se José Sebastião.
A remoção da sucata marítima é, por isso, “uma boa notícia”, já que permitirá voltar a recuperar o mar para a pesca e para os viveiros, o que não acontece agora.
“Os peixes vêm e morrem, não aguentam estes resíduos, os ferros, o gasóleo e morrem”, diz o pescador.
O soba Avelino Gonçalves Mujinga, que se apresenta como “bisneto da praia”, concorda que os navios prejudicam muito: “Até no fundo do mar temos esses barcos, a nossa pesca já não é como era antes. Desde que começaram a encostar aqui esses navios, desde os anos 90, já são demais. Dão cabo dos nossos materiais e ninguém vem ajudar a nossa comunidade”.
O soba diz que o Porto de Luanda é a entidade responsável pela deposição dos navios abandonados naquele local e não percebe como é que as embarcações “já estragadas” continuam a ter dono, referindo-se às empresas que exploram a sucata, algumas com sócios locais
“Eles vêm explorar o ferro e não vêm ajudar a nossa comunidade. Estamos cansados, nós não temos água, nem luz, nem escola”, critica.
Avelino diz que muitos moradores do Sarico chegaram também a dedicar-se à sucata “para procurar o pão de cada dia”, mas “privaram-nos”.
“Dizem que já não podemos tirar o ferro por que está comprado. E nós, que fomos nascidos aqui, não nos dão um apoio? O mar já não dá nada, tiramos uns ferros para conseguir um quilo de arroz para sustentar a nossa família, mas está duro mesmo”, aponta o pescador, que atribui a falta de peixe à poluição e diz que os turistas desapareceram também por causa dos detritos na praia.
José Batista, 19 anos , deambula pela praia, aproveitando a maré baixa para recolher alguma sucata, atividade que acumula com a rotina da pesca.
“Nós pescamos, mas quando os barcos ficam na beira aproveitamos para tirar alguns ferros, cada ano que passa trazem mais barcos aqui para o Sarico”, relata à Lusa.
O jovem diz que faz mais dinheiro com a sucata do que com o peixe e salienta que esta atividade está também sujeita a uma maior sazonalidade.
Por isso, junta-se a alguns amigos, em pequenos grupos. Escalam os cascos dos navios encalhados e pacientemente vão cortando as estruturas, apenas com recurso a ferramentas manuais.
Todos os pedaços valem dinheiro, mas o trabalho é árduo e, por vezes, acontecem acidentes.
“Há pessoas que saem daqui mesmo feridas”, conta José Batista.
Diz que nunca ninguém caiu do alto de um navio, mas alguns descuidos já provocaram ferimentos nos que “mais tem tendência de arriscar”.
“Ás vezes, arriscamo-nos a tirar algumas chapas, ferros, tubos enferrujados. Mas as metades que sobram ficam debaixo do mar, as pessoas quando vão banhar podem aleijar-se”, adianta, apontando também os danos causadas às redes como um problema.
Vendem o ferro ao peso, a compradores locais que transportam os materiais para Luanda e competem com sucateiros, mais organizados, que “cortam com máquinas” e usam o maçarico para desmantelar as embarcações.
Ramos Laurindo, de 20 anos, dedica-se principalmente à pesca e diz que há falta de alternativas de trabalho para os jovens locais.
Por isso, também ele tenta fazer “um pouco da arte dos ferros para conseguir alguma coisa de comer” por que a pesca “só dá de vez em quando”. A faturação depende dos dias e “da força”.
“Há pessoas que conseguem duas toneladas, três toneladas, vai depender da nossa força diz”, explicando que todos os materiais são vendidos ao mesmo preço.
Ao longe, o ruído metálico do martelo e do escopro abafa a suavidade das ondas e quase faz esquecer a paisagem tropical de mar azul e sol escaldante. Os jovens regressam ao trabalho, com esperança de ganhar alguns kwanzas para ajudar as famílias e chegar ao final do dia sem fome.