Segundo o Jornal I, Há vários processos na Justiça portuguesa que ameaçam tornar-se novos ‘irritantes’ nas relações com o Governo de Angola. E a cooperação entre as autoridades judiciais angolanas com as portuguesas não estão no seu melhor.
Há diversos processos a correr na Justiça portuguesa que envolvem cidadãos com nacionalidade angolana ou luso-angolana, que levaram a pedidos de colaboração das autoridades judiciais portuguesas às angolanas – que numa primeira fase tomaram a iniciativa de serem elas próprias a solicitarem apoio e cooperação à Procuradoria-Geral em Lisboa –, mas que agora parecem atravessar um novo momento de maior crispação.
Mais do que isso, há uma ameaça real de novos ‘irritantes’ (expressão que António Costa usou para classificar o processo que teve Manuel Vicente como arguido em Portugal – Operação Fizz – e que gelou as relações diplomáticas entre Luanda e Lisboa), até porque há o risco de o Estado português ficar com bens que os angolanos consideram seus, mesmo que os angolanos os venham a perder por inércia ou inépcia da sua Justiça.
«Não são os angolanos que se queixam da falta de cooperação dos portugueses, é ao contrário, e aqui podemos estar a criar um problema entre a Justiça angolana e a Justiça portuguesa, porque começa a repetir-se este padrão um bocado estranho», explica Rui Verde, Visiting Fellow na Universidade de Oxford, fundador da Angola Research Network e membro da Royal African Society e do CEDESA – pesquisa e análise independente, um think tank dedicado ao estudo e investigação de temas políticos e económicos da África Austral, em especial de Angola.
Entretanto, preparando o terreno ou adivinhando futuras tensões, um texto, claramente especulativo, tornou-se viral nas redes socais, sobretudo entre os angolanos, e inquietou muita gente. O texto diz assim (optamos pela transcrição de acordo com o original, sem eliminar erros): «O presidente português, chamou o primeiro-ministro António Costa, e pediu, num tom agressivo, explicações sobre o que se está a passar com o governo, quando encoraja a produção de notícias contra as autoridades angolanas e têm os seus membros em conversinhas com jornalistas que mais não fazem, senão manchar a imagem do governo angolano».
Graça Campos, um dos mais destacados jornalistas angolanos, no seu site Correio Angolense, escreveu: «Há poucos dias, algum gabinete do MPLA pagou por uma idiotice como esta», referindo-se ao texto transcrito.
O mesmo texto, ou a tal ‘idiotice’, ainda acrescenta: «a conversa entre Marcelo e Costa está a ser muito comentada nas redacções e órgãos de comunicação social e está a provocar divisões entre jornalistas e membros da direcção (…) há relatos de que nos próximos tempos a TVI pode perder jornalistas, como demissões, por estes estarem contra as manobras técnicas, que passam pela invenção de factos, tratamento insultuoso dos dirigentes angolanos, faltas de respeito ao presidente angolano. O presidente português também convocou os responsáveis dos partidos PSD e CDS-PP».
Sendo o texto claramente falso, e há até quem tenha identificado a sua possível origem, tem um óbvio propósito: assinalar que nem tudo está bem entre Portugal e Angola e antecipar novos ‘irritantes’ em vésperas da celebração dos 25 anos da criação da CPLP, em meados do próximo mês Julho, em Luanda, numa cimeira que deverá contar com a presença de Marcelo Rebelo de Sousa, o bem-amado do Estado angolano. Os papéis de mal-amados cabem a António Costa e à Justiça portuguesa.
Em Janeiro de 2020, Hélder Pitta Gróz, o procurador-geral angolano, deslocou-se a Lisboa para pedir pessoalmente à sua homóloga Lucília Gago ajuda em «muita coisa» – esta visita coincidiu com a explosão na imprensa do Luanda leaks, também em Janeiro – e pouco tempo depois de Isabel dos Santos ter visto as suas contas e bens arrestados em Angola e em Portugal.
Ainda a propósito de cooperação, na mesma altura, a Polícia Judiciária em Portugal fez saber, através do seu diretor, Luís Neves, que estava disponível para atender a qualquer pedido do Ministério Público angolano.
Em Abril deste ano, a imprensa portuguesa dá conta que as autoridades judiciais entregaram um extenso documento às autoridades angolanas, que incluía a lista de todos os angolanos, com ou sem dupla nacionalidade, que têm património em Portugal.
Num primeiro momento, a TPA, televisão pública de Angola – sendo que neste momento todos os canais de televisão no país são tutelados pelo Estado – noticia o documento no principal telejornal da estação. Mas, poucas horas depois, a PGR angolana desmente a existência de qualquer dossiê ou lista entregue pelas autoridades portuguesas às angolanas e Pitta Gróz muda o discurso: os pedidos de ajuda em «muita coisa», passaram para cooperação e colaboração «pontual» em «processos específicos».
A PGR angolana lidou, assim, com o documento como se fosse uma batata quente a saltar-lhe nas mãos, o que vem dar força à ideia dos muitos que dizem que novos ‘irritantes’ entre os dois Estados podem surgir a qualquer momento e com a mesma origem: em processos judiciais.
Lembramos que as autoridades judiciais portuguesas foram diligentes e, em 13 março de 2020, o jornal I dava conta de que «o juiz Carlos Alexandre determinou o arresto de todos os bens da empresária Isabel dos Santos em Portugal, no âmbito do processo que corre na Justiça de Angola. O i sabe que a decisão foi tomada no cumprimento de um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no passado dia 5. Os juízes desembargadores da 9.ª secção daquele tribunal consideraram que o juiz João Bártolo, do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, não deveria ter optado por uma apreensão dos bens, mas sim pelo cumprimento do arresto nos termos em que este foi pedido pela Procuradoria-Geral da República daquele país africano». E a notícia prosseguia: «O arresto agora ordenado pelo Tribunal Central de Instrução Criminal visa todo o património da filha de José Eduardo dos Santos em Portugal – casas, contas bancárias e empresas (nem a Efacec, na qual Isabel dos Santos tem uma participação de 67,2%, ficará de fora)».
Entretanto, o Estado português nacionalizou «temporariamente» a tecnológica Efacec, que agora está a reprivatizar. Os angolanos, se não tanto as autoridades mas mais a opinião pública, em reações nas redes sociais e em comentários televisivos ou radiofónicos, reagiram muito mal.
No passado mês de maio, Pedro Siza Vieira, o ministro de Estado, da Economia e da Transição Digital, anunciou que cinco empresas passaram à fase final do processo de candidatura à privatização da Efacec e têm agora semanas para apresentarem propostas vinculativas, porque o Governo português tem pressa em desfazer-se dos 71,73% que detém na Efacec, e quer fazê-lo até ao verão. As empresas que passaram para a shortlist são a Chint Group Corporation (chineses), a Elsewedy (egípcios), a Iberdrola (espanhóis) e os portugueses da DST e da Sing – Investimentos Globais. Depois, logo se verá a quem o Estado português terá de indemnizar, se ainda houver dinheiro para isso.
Desde cedo que se sabia que Isabel dos Santos poderia ser uma pedra no sapato das relações de Portugal com Angola, e há outra, e não é maior porque, e ao contrário de dos Santos, conta com o respaldo das autoridades angolanas: Álvaro Sobrinho. O departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) de Lisboa continua a investigar Sobrinho em casos como o do BES-BESA, por suspeita de burla, falsificação e branqueamento de capitais.
Rui Verde, académico e jurista, que colabora há alguns anos com o MakaAngola de Rafael Marques de Morais, muito atento a estas questões, não descarta a possibilidade destes novos ‘irritantes’ ensombrarem as relações bilaterais de Portugal com Angola, com origem nos casos de Justiça. «Ao contrário da ortodoxia, não acho que as relações Estado a Estado entre Portugal e Angola sejam muito importantes, também porque existe uma forte relação entre os povos. Sei que parece conversa fiada, mas é uma realidade, vi, recentemente, quando o Sporting ganhou o campeonato, as comemorações em Angola foram efusivas e expressivas. Há uma relação muito intensa, seja no futebol, seja na cerveja, seja na dupla nacionalidade. Outra coisa que me parece que está a acontecer, e está a acontecer pela segunda vez, e que me preocupa, é que a PGR angolana, ou o sistema de justiça angolano, estar a tirar o tapete à PGR portuguesa. Não é que a PGR portuguesa seja um exemplo – e não vamos aqui ser maniqueístas, que uns são bons e outros são maus – mas houve um primeiro momento em que isso aconteceu, precisamente com Manuel Vicente, tanto quanto sei os elementos contra o Manuel Vicente vieram de Luanda e a PGR portuguesa limitou-se, face à prova que tinha, a agir, não tinha outro remédio, e depois são os próprios angolanos que ficam irritados, quando foi alguém de Luanda que lançou o isco, digamos assim. E agora, e mais uma vez, é a PGR angolana que pede cooperação e, de repente, temos a PGR portuguesa a queixar-se da falta de cooperação dos angolanos. Não são os angolanos que se queixam da falta de cooperação dos portugueses, é ao contrário, e aqui, sim, aqui podemos estar a criar um problema entre a Justiça angolana e a Justiça portuguesa, porque se começa a repetir este padrão um bocado estranho. Os angolanos avançam e depois recuam».
Se não houver cooperação na Justiça, o Estado angolano arrisca-se a perder bens que estão neste momento a ser litigados na Justiça portuguesa. «Entre custas judiciais, indeminizações, isto e aquilo, Portugal tem argumento para ficar com os bens todos», argumenta.
A falta de cooperação da Justiça angolana com a Justiça portuguesa é por razões técnicas ou é mesmo por razões políticas? Rui Verde acha que «é essencialmente por políticas do Procurador-Geral, um homem desconfortável no seu papel, não pode ficar sentado, mas tem pouco zelo». Rui Verde vai um pouco mais longe e considera o actual PGR angolano, Pitta Gróz, um «grande erro de casting do Presidente João Lourenço».
O clamor em Angola é que a Justiça é seletiva e muito dependente do poder político.
Rui Verde recorda que os Governos do PS em Portugal sempre tiveram relações mais tensas com o Governo angolano e com o MPLA. E conclui: «Não acho que haja um problema de Estado, mas não diria o mesmo quanto ao que se passa nas questões judiciais».