Uma petição lançada pelo ator angolano Sílvio Nascimento, que criticou a Netflix por estar a preparar um documentário sobre a rainha Ginga, sem beneficiar Angola e “roçando a usurpação cultural”, já ultrapassou 12 mil assinaturas, mas há quem não concorde com essa queixa.
Na petição que lançou há três dias, através da plataforma Change.Org, o ator e produtor angolano afirma que a Netflix (plataforma de ‘streaming’) não demonstrou interesse nos conteúdos africanos PALOP, nem no filme produzido em 2013 sobre o tema (Njinga, Rainha de Angola), estando agora a preparar um documentário sem que Angola retire benefícios.
“Não está a ser filmado em Angola, nem consta equipa técnica e atores angolanos, achamos isso repugnante e roça a usurpação cultural para benefício próprio, onde contam a nossa história sob o seu ponto de vista e muitas vezes distorcendo os factos reais”, lê-se na petição, prosseguindo: “se vão contar a nossa história, que sejamos parte integrante do processo e respeitados a todos os níveis, chega de usarem a nossa identidade cultural para elevação de terceiros”
Em três dias, a petição ultrapassou as 12.000 assinaturas e o tema tem gerado polémica entre os internautas nas redes sociais, havendo que defenda a posição do ator, incluindo figuras públicas como a empresária Isabel dos Santos ou a atriz e modelo Lesliana Pereira, mas também quem o critique como o jornalista e coordenador do programa radiofónico “Conversa à Sombra da Mulemba”, Raimundo Salvador.
Em declarações à Lusa, Sílvio Nascimento sublinha que o que pretendia era chamar a atenção para a cultura angolana e para a falta de investimento na produção nacional.
“Temos uma lei do mecenato que não funciona e temos vários profissionais da área, a nível de produção que vivem à mercê da sua sorte, por que a produção nacional é desvalorizada”, afirmou, admitindo que a forma como se expressou tenha dado azo a interpretações erradas.
“A intenção não é impedir a Netflix de fazer um produto internacional, histórico, é pedir — daí que se trate de uma petição — que, quando se faça isso (…) porque não contar com produtores nacionais, uma vez que estamos num momento de empoderar o africano. É uma questão de inclusão”, comentou, notando que Jada Pinkett Smith, a produtora do documentário também é afrodescendente.
Questionado sobre o porquê de considerar que se trata de uma possível usurpação cultural, respondeu que se trata de uma história narrada de forma “diferente”, por terceiros que ganham em benefício próprio: “somos gatos escaldados”.
Sílvio Nascimento defende, por outro lado, que devem ser incluídos autores, estudiosos e produtores culturais angolanos neste tipo de produções, sugerindo que o objetivo é “abrir um debate sobre o tema”, inclusive quanto à criação de quotas para profissionais de um determinado país.
“O que eu quero dizer é: venham fazer (filmes), façam muitos, mas incluam-nos”, apelou.
O ator angolano mostra-se surpreendido pela adesão à petição, que contava 12.050 assinaturas pouco depois das 17:00, e diz que é revelador do descontentamento das pessoas com a falta de apoio ao conteúdo nacional e preocupação com a deturpação da cultura e questiona o papel do Ministério da Cultura: “nós vemos a dotação orçamental a cada ano, mas estes financiamentos vão para onde? Não investem na produção cultural. Aqui está difícil”, vincou.
No entanto, para o jornalista cultural Raimundo Salvador, a petição não faz qualquer sentido: “Quando a rainha Ginga nasceu e morreu nem havia Angola. Por outro lado, o nome da Ranha Ginga há muito ultrapassou as fronteiras de Angola”, realçou, explicando que esta é também “uma figura marcante no imaginário dos afrodescendentes das Américas”.
Raimundo Salvador salientou, por outro lado, que há vários livros de historiadores americanos sobe a rainha Ginga, perguntando se “estes também teriam de pedir uma espécie de autorização para escreverem sobre a Rainha Ginga”.
“Logicamente, se alguém escreve um livro também pode aparecer alguém que quer fazer um filme, que tem uma dimensão ficcional, ou um documentário, e isto é perfeitamente normal”, destacou, mostrando-se surpreendido com a iniciativa e com a adesão “de alguns segmentos da intelectualidade angolana, e até alguns jornalistas e pessoas respeitáveis que embarcaram neste discurso que não faz sentido”
Para Raimundo Salvador, tratou-se de um ato “impulsivo e inocente” que resultou numa petiça “ridícula”, pois “o documentário vai engrandecer Angola e levar uma figura angolana para o palco internacional numa plataforma como a Netflix”.
No entanto, reconheceu “mérito” em centrar a discussão no tema do investimento na produção cultural, sublinhando que é também importante falar sobre formação.
“Temos muitos problemas estruturais. O grande problema é que não olhamos para as questões estruturais e, se não olhamos para isto, a discussão vai sempre parar a esse ramerrame”, assinalou, dizendo que é prioritário dar formação, identificar talentos e potenciar talentos.
“Deveríamos aplaudir, por isso, esta iniciativa americana e ter algum respeito pelos produtores, que são entidades com alguma bagagem técnica e financeira e têm conhecimento, não estão a partir para uma brincadeira”, rematou.
A rainha Njinga Mbande, com nome de batismo cristão de Ana de Sousa, reinou nos reinos do Dongo e da Matamba, no século XVII, e é uma das figuras históricas mais emblemáticas e acarinhadas em Angola pelo seu papel na resistência contra a presença portuguesa naquele território.