O maior castigo para aqueles que não se interessam por política é que serão governados pelos que se interessam” – Platão.
O cidadão e a política. A palavra política deriva do adjectivo grego pólis (politikós) e designa tudo o que se refere à cidade, ao que é urbano, civil, público, sociável e social (Bobbio, 1998: 954). Política diz respeito ao que é da cidade e do cidadão, à forma de organização e gestão da coisa pública, do convívio social, da distribuição do poder, da coordenação de acções comuns para a satisfação das necessidades da comunidade, mediante discussões e deliberações no espaço público (Bittar, 2011: 12).
Nelson D. António / Observatório da Imprensa
Assim colocado, a política não constitui um espaço ou instrumento exclusivo dos políticos profissionais, governantes, gestores públicos e cientistas políticos. O exercício da política implica o envolvimento de todos os cidadãos e cidadãs e demanda o fortalecimento da consciência política de cada membro da sociedade; o fortalecimento da participação política da sociedade, dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil, dos espaços públicos de discussão e deliberação, e dos mecanismos e exercícios de fiscalização, prestação de contas e responsabilização dos agentes públicos.
O direito de participação do cidadão na vida pública goza de amparo da Constituição da República de Angola, no artigo 52.º, n.º 1, segundo o qual “Todo o cidadão tem o direito de participar na vida política e na direcção dos assuntos públicos, directamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos, e de ser informado sobre os actos do Estado e a gestão dos assuntos públicos, nos termos da Constituição e da lei”. Esta garantia constitucional assegura aos cidadãos o direito, não apenas de escolher os seus representantes, mas também de monitorar o processo de escolha eleitoral para que o resultado seja, de facto, a expressão da vontade soberana dos eleitores.
Eleições e fraude eleitoral em Angola
O resultado da vontade soberana dos cidadãos eleitores angolanos tem sido objecto de contestação em todas as eleições realizadas em Angola (1). A contestação dos resultados eleitorais decorre de uma confluência de factores que colocam sob suspeita todo o processo eleitoral, dentre os quais destacamos a vigente Constituição da República de Angola, a Lei Orgânica da Comissão Nacional Eleitoral, a Lei Eleitoral, o órgão da administração eleitoral, a simbiose partido-Estado, o recurso à violência e manipulação, o nível de consciência política dos cidadãos e a má-fé de certos agentes públicos e actores políticos.
A remoção e/ou reforma destes factores de bloqueio que impedem a realização de eleições livres, justas e transparentes constitui conditio sine qua non para que a vontade soberana dos cidadãos seja de facto manifesta. A Constituição da República, por exemplo, atribui a organização dos processos eleitorais a um órgão independente. Entrementes, a composição da Comissão Nacional Eleitoral (CNE) reproduz a sobre representação parlamentar do MPLA, fazendo sucumbir a pretensa independência da CNE. A criação de um modelo que envolve cidadãos, cuja conduta é manifestamente ilibada e de reconhecido compromisso com o país, ou a adopção de um modelo composto por magistrados apartidários eleitos mediante concurso público dotado de lisura, podem constituir alternativas para evitar a fraude eleitoral. Lembre-se que a CNE tem sido presidida por magistrados judiciais com evidentes ligações ao MPLA.
Outro aspecto reside no facto de que o controlo do registo eleitoral oficioso ser de responsabilidade do Ministério da Administração do Território, comandado por um auxiliar do Presidente da República, com interesse nos resultados eleitorais. Isto é, agentes públicos e actores políticos em distintos níveis da estrutura administrativa pública e partidária confundem dolosamente em desfavor do bem comum os interesses partidários e os interesses nacionais. Contra estes factores de bloqueio devem residir grande parte dos esforços dos cidadãos para combater a fraude eleitoral, uma vez que a engenharia da fraude não se restringe ao acto eleitoral em si e à contagem dos boletins de votos. O seu início é anterior, perpassando pelo ordenamento jurídico, pelo processo de contratação de empresas responsáveis pela produção do material eleitoral e pelas instituições envolvidas na organização e observação eleitoral.
Demanda-se, entrementes, o aumento do nível de consciência política dos cidadãos, o que, per si, constitui um factor de bloqueio para a realização de eleições livres, justas e transparentes, porquanto cidadãos dolosamente miserabilizados, alienados politicamente e sistematicamente intimidados são perfeitos para a consolidação de regimes ilegítimos por meio de eleições. O uso dos medias, sobretudo públicos, para desinformar e intimidar os cidadãos, o recurso às forças de segurança do Estado, comités de especialidade e milícias digitais acéfalas, para reprimir o exercício de direitos constitucionalmente consagrados, a domesticação de cidadãos por meio de igrejas, a corrupção de cidadãos desumanamente empobrecidos e o uso de dinheiro público em benefício do partido governista, são estratagemas de regimes ilegítimos que procuram assegurar o seu poder por meio de pseudo-eleições.
Algumas alternativas para debelar estes factores de bloqueio podem passar pela criação de brigadas cidadãs apartidárias com a responsabilidade de difundirem direitos de cidadania e estratégias de resistência, mediante recursos lúdicos e criativos em espaços de grande circulação e aglomeração de pessoas, bem como, fazendo uso das redes sociais para este fim. A criação e distribuição de cartilhas e bandas desenhadas, contendo os contactos dos brigadistas, instituições de defesa dos direitos humanos nacionais e internacionais, assim como a organização sistemática de ciclos formativos para a cidadania podem constituir importantes estratégias para evitar a fraude eleitoral. Para o efeito, é necessário um alto grau de compromisso, abnegação e um pacto entre os cidadãos que lutam por um país melhor.
O cidadão e a monitoria dos resultados eleitorais
Os resultados eleitorais podem ser monitorados por brigadas cidadãs previamente capacitadas, a fim de realizarem o levantamento dos resultados eleitorais a partir das assembleias de voto, das comissões municipais e provinciais eleitorais e realizarem a contagem paralela. Para o efeito, podem ser estabelecidas parcerias com igrejas, organizações não-governamentais, dentre outras. Pode-se, outrossim, pressionar as instituições do Estado para a adopção de um aplicativo que permite ao eleitor receber uma cópia electrónica instantânea da acta das operações eleitorais a fim de assegurar o apuramento paralelo e a transparência dos resultados eleitorais.
No Brasil, por exemplo, este aplicativo denomina-se Boletim na Mão e está disponível no site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para qualquer cidadão descarregar no seu telemóvel ou tablet e monitorar os resultados eleitorais (TSE, 2021).
A criação de uma rede de cidadãos articulada para catalogar as irregularidades identificadas e apresentadas durante a votação e escrutínio, resultante de parceria com delegados das listas concorrentes, pode servir para posterior divulgação e denúncia aos órgãos nacionais e internacionais, bem como para se constituir em sólido fundamento para pressões sociais por meio de manifestações, vigílias, greves e outras estratégias de resistência que podem contribuir para evitar a fraude eleitoral e suas nefastas consequências aos cidadãos.
É imperativo rememorar que a Carta Africana sobre a democracia, eleições e governação, estatui em seu artigo 22º que “Os Estados partes criam um ambiente propício para a implementação de mecanismos nacionais independentes e imparciais de controlo ou de observação das eleições.” Pois, a transparência eleitoral constitui a “pedra de toque” para avaliar os resultados eleitorais. Isto posto, o governo angolano tem o dever de assegurar aos cidadãos o direito e condições para participarem da vida política por meio do controlo do processo eleitoral, a fim de evitar suspeições e fraudes eleitorais.
Considerações finais
Em países como Angola, em que um partido se confunde com o Estado e o dinheiro público é usado em benefício de uma elite em detrimento do bem comum, e são utilizadas igrejas, artistas, meios de comunicação social públicos e privados, órgãos da administração eleitoral, forças de segurança e demais instituições do Estado para manipular e/ou intimidar os cidadãos, evitar a fraude eleitoral é uma tarefe hercúlea. Torna-se, portanto, necessário e urgente demover os factores de bloqueio que impedem a realização de eleições livres, justas e transparentes, mediante a adopção de estratégias lúdicas, criativas e de resistência permanente, sob pena do país continuar amordaçado e espoliado por certos parasitas trasvestidos de actores políticos e agentes públicos.
Os factores de bloqueio que cerceiam a participação dos cidadãos na política são manifestamente ilegais e imorais, razão pela qual devem ser denunciados interna e externamente e combatidos com veemência e inteligência. Estratégias bem articuladas para exigir a revogação de toda a legislação que favorece a fraude eleitoral e impedir a criação e vigência de novas leis com o mesmo objectivo; bem como exigir transparência e fiscalizar a contratação das empresas que confeccionam o material eleitoral; assim como requerer a reforma do modelo de órgão da administração eleitoral independente; e, por fim, a criação de brigadas cidadãs responsáveis pelo aumento da consciência política dos cidadãos e fiscalização do acto eleitoral, mediante a adopção do controlo electrónico das actas, por exemplo, podem ser algumas alternativas para evitar a fraude eleitoral em Angola.
*Doutor em Ciência Política. Mestre em Filosofia. Licenciado em Filosofia. Graduado em Direito. Graduado em Teologia. Professor, Pesquisador e Advogado.
Notas
(1). A contestação dos resultados eleitorais de 1992, envolvendo a solicitação de recontagem dos votos, esteve mormente na base do reinício do conflito armado entre o MPLA e a UNITA (Eleição para Deputados: MPLA:129; UNITA: 70; PRS: 6; FNLA, 5; PLD, 3; PRD:1; ADA:1; PSD:1; PAJOCA:1; FDA:1; PDP/ANA:1; PNDA:1. Eleição para Presidente da República: José Eduardo dos Santos, candidato do MPLA: 49,57%; Jonas Malheiro Savimbi, candidato da UNITA: 40,07%, havendo a necessidade de realização de segunda volta). Os resultados das eleições legislativas de 2008 foram contestados judicialmente (MPLA: 191; UNITA: 16; PRS: 8; FNLA: 3; ND: 2). Os resultados eleitorais de 2012, já na vigência da Constituição de 2010, foram igualmente contestados judicialmente (MPLA:175; UNITA: 32; CASA-CE: 8; PRS: 3; FNLA: 2) (António, 2015). Por semelhante modo, os resultados eleitorais de 2017 foram judicialmente contestados (MPLA: 150; UNITA:51; CASA-CE: 16; PRS: 2; FNLA: 1) (DW, 2021). A alegação de fraude eleitoral constitui o elemento convergente em todas as eleições realizadas em Angola, cujos resultados atribuíram vitória ao MPLA, em flagrante contraste com a incapacidade deste partido em proporcionar condições básicas de vida aos cidadãos.
Referências
ANTÓNIO, Nelson Domingos. Transição pela transacção: uma análise da democratização em Angola. Rio de Janeiro: PoloBooks, 2015.
BITTAR, Eduardo, C. B. Curso de filosofia política. São Paulo: Atlas, 2011.
BOBBIO, Norberto, et. al. Dicionário de política. v. I Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.
MPLA vence eleições gerais em Angola com 61,07%. <https://www.dw.com/pt–002/mpla–vence–elei%C3%A7%C3%B5es–gerais–em–angola–com–6107/a–40388567vence eleições gerais em Angola com 61,07% | Angola | DW | 06.09.2017> Acesso em: 21 Maio 2021.