No início deste ano, foi publicado na África do Sul o Relatório Zondo, que contém diversas lições para Angola acerca do combate à corrupção: umas sobre o que se deve fazer, outras sobre o que se deve evitar. Quando se chega ao fim da leitura, fica a sensação de que o que aconteceu na África do Sul, em termos de corrupção e “captura do Estado”, não é muito diferente do que aconteceu em Angola.
O Relatório Zondo
O Relatório Zondo é um texto extenso, de 874 páginas, sobre alegações de corrupção de alto nível ocorridas durante a presidência de Jacob Zuma na África do Sul. Foi publicado a 4 de Janeiro de 2022.
Este relatório é o resultado do trabalho da Comissão Zondo. Esta Comissão, designada oficialmente como Comissão Judicial de Inquérito sobre Alegações de Captura do Estado, Corrupção e Fraude no Sector Público, incluindo Órgãos do Estado, promoveu um inquérito público com vista a investigar as alegações de captura estatal, corrupção e fraude no sector público, na África do Sul, durante a presidência de Jacob Zuma.
A Comissão desenvolveu um esforçado trabalho entre 2018 e 2020, entrevistando mais de 300 testemunhas e reunindo centenas de milhares de páginas e um exabyte de dados como provas.
O seu nome informal, Comissão e Relatório Zondo, deve-se ao facto de a direcção dos trabalhos ter ficado sob responsabilidade de Raymond Zondo, o juiz mais antigo do Tribunal Constitucional e chefe do poder judicial da África do Sul, que exerce autoridade final sobre o funcionamento e gestão de todos os tribunais.
O essencial das conclusões de Zondo é que o ex-presidente Jacob Zuma promoveu os interesses da família Gupta, nascida na Índia, e seus aliados próximos, à custa e em prejuízo do povo da África do Sul.
Em concreto, o relatório indica que o presidente sul-africano, em conluio com a família Gupta, criou um padrão de abuso de poder em todas as etapas da contratação pública e propiciou que a boa administração das empresas públicas caísse em colapso. Concluiu também que existiu uma “captura do Estado”, que se define como uma forma de corrupção na qual empresas e políticos conspiram para influenciar os processos de tomada de decisão de um país de modo a promover os seus próprios interesses.
Ao todo, 1438 indivíduos e instituições foram implicados pelo Relatório Zondo.
O Estado democrático foi capturado; instituições-chave foram saqueadas; e grandes somas de dinheiro público foram roubadas. O ex-presidente Jacob Zuma e a sua rede de aliados exploradores foram, de acordo com as conclusões do relatório, os responsáveis.
O juiz Zondo descobriu que a Autoridade Tributária Sul-Africana (Sars), outrora considerada uma instituição de mérito mundial, foi uma das principais instituições visadas pela captura do Estado, porque a sua capacidade de investigação e fiscalização era um obstáculo para as pessoas envolvidas no crime organizado de saque. Sob a liderança de Tom Moyane, aliado de Zuma, a instituição foi sistemática e deliberadamente enfraquecida.
A companhia de aviação nacional South African Airways (SAA) também foi destruída por fraude, assim como o braço de informação do governo (GCIS), que foi utilizado para mascarar os abusos.
No entanto, a comissão Zondo não dispõe de poderes de acusação criminal. Só agora é que a Procuradoria-Geral sul-africana (National Prosecuting Authority) e outras agências de aplicação da lei podem ter acesso às informações contidas no relatório e usá-las para instaurar procedimentos criminais. Portanto, só a partir daqui começam as acções judiciais.
Vantagens e desvantagens de um Relatório Zondo em Angola
Encontramos uma vantagem óbvia em ter existido em Angola, no início do combate à corrupção encetado por João Lourenço em 2017, uma iniciativa idêntica à Comissão Zondo, isto é, uma Comissão de Inquérito presidida por um juiz prestigiado, destinada a abarcar, de forma sistemática, os eventos de corrupção e captura do Estado ocorridos no país durante a presidência de José Eduardo dos Santos.
Esta Comissão evitaria as acusações de selectividade na justiça e daria uma visão sistemática e compreensiva do combate à corrupção.
Entenda-se que a imagem de selectividade em Angola no combate à corrupção resulta da natureza dos meios escolhidos.
Ao ter-se optado por uma aproximação meramente judicial, em que cada caso é um caso, que forçosamente tem de ser instruído individualmente por um procurador da República e julgado isoladamente num tribunal, é evidente que apenas emerge uma visão atomizada da justiça em acção, porque é assim que a justiça funciona: em função do caso concreto.
Então, dir-se-á sempre que A foi acusado e B não foi; depois, quando B for acusado vai-se afirmar que falta C; e assim sucessivamente.
Acontece que não podia ser de outra forma. Escolher a justiça ordinária obriga a que se tenha paciência, sobretudo quando os recursos são escassos, como é o caso em Angola. Um procurador que está a acusar A não tem meios para, ao mesmo tempo, investigar B e C.
Nestes termos, a sistematização global que uma Comissão tipo Zondo faria em Angola permitiria juntar tudo e evitar estas acusações de selectividade.
No entanto, a opção sul-africana tem um senão face ao método escolhido em Angola. Entre 2018 e 2022, não houve acusações criminais de corrupção na África do Sul e os irmãos Gupta já fugiram, estando agora em parte incerta.
Só agora é que a NPA (PGR local) se vai debruçar em detalhe sobre a questão e deduzir acusações. Enquanto isso, em Angola já se procederam a várias acusações criminais, a algumas condenações e a um sem-fim de apreensões.
Consequentemente, não é fácil afirmar com certeza qual o melhor método.
Em termos de transparência e sistematização, talvez a opção sul-africana seja melhor. No entanto, naquilo que respeita a resultados concretos, é possível que estes tenham sido alcançados mais rapidamente em Angola, apesar das dificuldades e deficiências apontadas.
Em todo o caso, Angola ganharia com a instauração de mecanismos próprios exclusivos para o combate à corrupção e a busca de formas negociadas de resolução de alguns conflitos.