Em 25 de Fevereiro de 1956, perante o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), o secretário-geral do partido e líder máximo da União Soviética na altura, Nikita Khrushchov, proferiu um discurso histórico. O título oficial é “Sobre o culto à personalidade e suas consequências”, mas ficou mais conhecido como “Discurso Secreto”. Foi este discurso que marcou o corte de Khrushchov e do PCUS com o anterior líder supremo José Estaline, que ocupara o poder entre 1922 e 1953, ano da sua morte.
Nesse dia longínquo de Fevereiro, Khrushchov disse manter-se fiel ao partido e ao comunismo, mas denunciou Estaline, seu antecessor, sobretudo pela forma autocrática e prepotente como tinha dirigido o país e o partido, com as constantes purgas e os fuzilamentos, bem como alimentando um bajulatório culto de personalidade que permeava todos os sectores da sociedade.
O novo líder comunista considerou esta postura insustentável e anunciou a ruptura com as práticas de Estaline. Este corte estava em curso desde a morte do líder, em 1953, simbolizado pela execução do chefe dos serviços de segurança de Estaline, Laurenti Beria, ainda em 1953.
Khrushchov quis manter a força e vanguarda liderantes do partido, e ao mesmo tempo libertar-se dos fantasmas e da crueldade do passado. Sentiu que só conseguiria fazer isso se denunciasse as más práticas de Estaline e rompesse com o seu legado. Assim o fez.
Nikita Khrushchov não era um novato na política soviética. Tinha sido, aliás, um dos principais executores da política de Estaline. Em 1934, já era figura de proa do PCUS em Moscovo, sob liderança suprema de Estaline, e presença habitual na sua casa de campo, onde convivia até altas horas da noite com Estaline, em bem regadas festas. Terá também participado nas purgas estalinistas. Em Moscovo, às ordens de Estaline, dos 38 altos funcionários do partido, 35 foram mortos. Khrushchov terá aprovado as detenções e, aparentemente, pouco ou nada fez para salvar da morte os seus próximos. Depois disto, foi dirigir o partido na Ucrânia, onde se destacou pela rudeza. Mais tarde, durante a Segunda Guerra Mundial, foi o comissário político responsável pela batalha de Estalinegrado. Continuou a ocupar altos cargos e, nas festas de Estaline, quando o ditador soviético o mandava dançar, ele dançava literalmente. Com a morte de Estaline, Khrushchov embrenhou-se numa luta de poder, e ganhou-a.
O ponto sobre Khrushchov é que foi um estalinista determinado, obedecendo às ordens do ditador vermelho. Quando este morreu e Khrushchov assumiu o poder, cortou radicalmente com as práticas anteriores e modificou a governação na União Soviética.
A história não se repete, e Angola não é a União Soviética, mas há comportamentos idênticos que devem ser tidos em conta.
“José Eduardo dos Santos (JES) não é Estaline, não mandou assassinar milhões e milhões de pessoas, mas foi dirigente máximo de um país durante décadas e estimulou um culto de personalidade semelhante ao estalinista”. João Lourenço não é Khrushchov. Na realidade, não foi um fiel executor das políticas de JES, tendo-se dedicado a uma longa travessia do deserto.
Contudo, João Lourenço tem uma semelhança com o soviético Khrushchov: quer mudar o estado de coisas que encontrou, quer romper com o paradigma de JES. Mas, se existe aqui uma semelhança, há também uma grande diferença. Lourenço não fez um discurso como o de Khrushchov ao XX Congresso do PCUS. Pelo contrário, tem mantido uma relação de ambiguidade com JES. Por um lado, durante o mandato de Lourenço, os filhos de JES são condenados em tribunal, auto-exilam-se ou ficam com os bens congelados, e o próprio JES foi afastado da liderança do partido. Por outro lado, não há um corte total, nem há uma ruptura nítida com o passado. Há sombras e clareiras. Ainda muito recentemente, JES foi nomeado número 1 de um Conselho de Honra do MPLA.
Os sinais de João Lourenço são demasiado confusos. Muitos dirão que ele tem de ser mais hábil do que Khrushchov. Na verdade, o líder soviético acabou por perder o poder em 1964, oito anos depois do discurso anti-estalinista, dando lugar ao imobilismo de Brejnev que levou ao colapso final da União Soviética, muitos anos depois. Argumentar-se-á que João Lourenço não quer o mesmo destino do soviético, e por isso tem de ser mais paciente e articulado.
A quase unanimidade que rodeou João Lourenço no último Congresso do MPLA, reeleito com 98,04% dos votos, pode ser real ou aparente, mas é o dado existente neste momento. Ora, tal unanimidade exige um líder forte e reformista. Certamente o MPLA espera que o seu líder o salve da irrelevância a que o PCUS foi reconduzido na moderna Rússia. Neste momento, João Lourenço tem todos os instrumentos do poder político na sua posse – cabe-lhe saber usá-los e encetar em definitivo as reformas que são devidas a Angola.
Quando se corta um fio, há que o cortar até ao fim. Não há semi-cortes.
João Lourenço deveria avaliar o passado e decidir qual o futuro que pretende. Nessa medida, uma elucidação em relação a JES e ao santismo impõe-se, tal como Khrushchov fez sem apelo nem agravo.