O povo precisa de ter mais poder, afirma Jacinto Pio Wacussanga. O padre angolano diz que as autarquias seriam uma resposta sustentável à seca e fome no sul do país. Mas o MPLA receia “perder a hegemonia”.
Há uma “tragédia humana” em curso no sul de Angola. Centenas de milhares de pessoas vivem em situação de insuficiência alimentar aguda, segundo estimativas locais. O Governo não está a ser capaz de ajudar a população afetada pela pior seca dos últimos 40 anos, alerta Jacinto Pio Wacussanga em entrevista à DW África, em Berlim.
De acordo com o padre angolano, responsável da Associação Construindo Comunidades, a situação arrasta-se há demasiado tempo: há pessoas a morrer de fome sem que o Governo de João Lourenço queira realmente combater a raiz do problema.
“Até quando é que esta situação se vai manter?”, questionou Pio Wacussanga à margem de um encontro da Mesa Redonda das organizações não-governamentais alemãs que trabalham em Angola sobre as consequências da seca no sul do país.
DW África: Quão grave é a situação no sul de Angola?
Jacinto Pio Wacussanga (JPW): Há pessoas a morrer, sobretudo idosos na faixa dos 70-80 anos. É uma tragédia humana quando há gente a morrer de fome num país com imensos recursos e imenso potencial. É uma grande tragédia. Como angolano, depois de 46 anos de independência, é uma tragédia.
DW África: A fome e a seca no sul de Angola são problemas cíclicos. Como é que se deixou arrastar esta situação durante tanto tempo?
JPW: As alterações climáticas só vieram destapar o problema. As vulnerabilidades já lá estavam, não só em termos de acesso aos alimentos como também relativamente à incapacidade das pessoas poderem, elas próprias, contribuir para a solução do problema, ao nível local. Uma grande autonomia local poderia dar muito poder às comunidades para elas poderem enfrentar os seus desafios.
DW África: Portanto, a realização de eleições autárquicas ou o estabelecimento das autarquias poderia ajudar neste sentido?
JPW: Absolutamente. As pessoas conhecem os seus meios, sabem onde devem cavar mais poços, onde devem investir mais na agricultura, onde devem apascentar mais.
DW África: O Governo central não tem interesse nisso?
JPW: Enquanto atores da sociedade civil, temos estado sempre a pressionar para que o Governo compreenda que só tem a ganhar com as autarquias. Infelizmente, há um receio no interior do partido no poder. O MPLA tem receio de perder a hegemonia ao implementar as autarquias, isto é claro. Mas o que nos interessa não é quem perde, ou ganha, hegemonia – o que interessa é o serviço ao povo. Agora, até quando é que esta situação se vai manter às expensas das vidas das pessoas? Isto é muito sério.
DW África: Para o próximo ano estão previstas eleições em Angola. Este ponto está na agenda?
JPW: É claro que não está na agenda dos políticos no poder. Angola está no limiar de um processo de transição. Os indicadores apontam para isso. A grande esperança do povo, que era a Frente Patriótica Unida, foi travada com este acórdão, que veio do seio do MPLA, para não se realizar as aspirações dos angolanos. Porque a Frente Patriótica Unida não é propriedade da UNITA, nem do PRA-JA – os jovens, os vendedores de rua, os líderes, as pessoas cansadas de terem o mesmo partido durante estes últimos 46 anos, querem fazer a alternância. Eles têm esse direito. Não é pecado falar nisso. É preciso deixar que as pessoas façam a alternância do poder. E o MPLA deveria colaborar nisso para que se faça uma transição pacífica em Angola. Com esse gesto, mandam um recado errado.
O nosso receio é que, com tantos jovens a quererem mudar, se isso for travado demais, infelizmente poderemos alcançar um dia a situação em Moçambique ou na Etiópia. Nós não queremos isso. Não queremos que um dia haja um conflito armado não resolvido. Já temos bastante. Basta a situação de Cabinda. E veja a opressão contra as pessoas do Leste que resultou no massacre de Cafunfo, que o Governo não quer investigar. Tudo isso são vontades suprimidas. Quanto mais se suprimir as vontades, mais conflitos há.