João Lourenço atropelou a verdade sem nenhum rebuço, manipulou a memória trágica do passado e o que conseguiu, afinal de contas, foi deixar a sociedade angolana ainda mais escrava da dor.
Por períodos prolongados, Angola foi devastada, após a sua independência, por conflitos internos que deixaram pelo caminho um saldo inominável de violências ostensivas. O corolário maior destes conflitos, o mais grave, foi sem dúvida o conflito intrapartidário no MPLA em 1977, que empurrou o país para a iminência de uma fragmentação das estruturas do Estado. A vaga de canibalismo que se seguiu revelou-se de uma dimensão inacreditável. Uma verdadeira marcha de horrores.
A pretexto de combater a espiral de subversão que os mandarins do partido diziam estar em curso contra o regime de Agostinho Neto, os “cavaleiros da morte” – militares governamentais, agentes da polícia secreta e outros legionários homicidas – saíram às ruas e, impelidos por uma vertigem assassina desvairada, cuspiram fogo de metralha sobre as populações e paralisaram todo o país com o cheiro nauseabundo do medo e do terror: prenderam, torturaram e fuzilaram milhares de pessoas, de noite e de dia, sem dar às vítimas o mais elementar direito à defesa. Bairros como o Sambizanga, em Luanda, ficaram sepultados meses a fio numa dor insuportável, tamanho o morticínio perpetrado pelos destacamentos criminosos do Governo. Momentos houve em que o bairro mais parecia um deserto de cadáveres, tal qual o atestam testemunhas ainda vivas.
Angola acabara então de sair do ventre da luta armada de emancipação e esta era a estrada da liberdade prometida pelo MPLA. Liberdade chumbada em baionetas e inspirada em códigos de violência total e na aplicação intransigente de políticas de uniformização dos hábitos e da vida social dos cidadãos e na uniformização da palavra e modos de pensamento. Entendiam as lideranças netistas ser historicamente imperioso fazer uma revolução nacional e, para isso, cinzelar a ferro e fogo na alma e na carne dos angolanos a ideologia do MPLA.
Foi neste marco, ao arrepio de qualquer conceito de civilidade e tolerância, que se acusou toda uma geração de jovens (absolutamente alheios às lutas internas do MPLA) de vinculação com supostos actos de insurgência contra os poderes instituídos. Sem dó nem piedade as forças de segurança supliciaram esses rapazes em rituais de suprema malvadez: deceparam-lhes a cabeça ou enterraram-nos vivos, não sem antes os desumanizar nos seus corpos. Um sem-fim de crimes hediondos e chocantes que inauguraram o arranque da independência nacional e se perpetuam até aos nossos dias como herança do medo colectivo e como nódoa que cobre a memória do país. Mas não bastasse este rol macabro de acontecimentos, dúzias de adolescentes também tiveram as suas vidas tragicamente calcinadas em circunstâncias estranhas, sem que alguma vez os governos do MPLA se dignassem apurar o que aconteceu.
Entretanto, decorridos tantos anos sobre esse período assustador, nada mais se esperava dos governantes senão uma postura séria de esclarecimento na abordagem desse gigantesco extermínio e daquilo que foi a conduta perversa e criminal do então Presidente Agostinho Neto. Ao invés, o que se tem colhido são pronunciamentos supérfluos e a recusa de escutar os protestos de grupos sociais que tiveram as suas vidas humilhadas e mutiladas. Pessoas ou famílias que perderam os seus parentes, sem esquecer os sobreviventes que nas cadeias e nos campos de concentração do regime purgaram sofrimentos indescritíveis. Todos há muito que clamam por justiça e questionam os arranjos institucionais que têm estado a ser implementados.
Que arranjos são esses? Sob os auspícios do Governo do general João Lourenço criou-se uma Comissão de Reconciliação mandatada para gerir o conflito entre o Estado e as suas vítimas. Se no início a comissão suscitou algumas expectativas positivas, tendo em conta o simbolismo inédito do gesto presidencial, com o passar do tempo sobreveio o desencanto. Sombras enganosas se foram adensando sobre a comissão, dado o carácter que ela assumiu de si própria, mas sobretudo pelas figuras que compõem o seu elenco: membros da cúpula do MPLA, militares de alta patente, servidores da Casa Civil e da segurança da Presidência da República, agentes dos serviços secretos e do Ministério dos Antigos Combatentes, além de outros funcionários da mesma cepa, todos emparceirados com profissionais da imprensa servilmente alinhados com o poder político dominante.
Um painel de pessoas, no mínimo, duvidoso que expôs bem à vista do mundo a natureza daquela comissão e o projecto que o respalda. Na gestão dos seus trabalhos nada ali se tem feito sem o pulso pesado dos militares. Foram eles desde sempre a bússola da casa, dando ordens e orientações, já que são eles os grandes responsáveis pelas chacinas do 27 de Maio enquanto seus executores materiais. A funcionar por delegação da classe castrense, a comissão limita-se a actuar como um seu escudo de protecção, de modo a evitar que os seus crimes sejam ali mencionados ou venham à luz, conforme se pode ler num outro texto meu neste jornal, Os militares do MPLA na contramão da democracia e da reconciliação nacional (edição de 24 de Março de 2021).
Paradoxal esta realidade sobre uma comissão dita de reconciliação a funcionar com militares e para militares, entre os quais antigos carrascos, alguns deles bem conhecidos pela sua infame reputação. Um fenómeno, com certeza, impensável em países civilizados e democráticos, bem diferente de Angola, regida por um sistema político personalista e militarizado, onde tudo é possível, mesmo para lá dos limites do grotesco. Por isso, nunca os cânticos de sereia do Governo, sempre hábil em artimanhas, encontraram ressonância no meu ânimo, menos ainda as suas repetidas proclamações altissonantes a favor do perdão e da reconciliação.
Quem olhasse atentamente para a comissão desde a primeira hora e para os seus comunicados percebia a grande mentira alojada naquele antro de cortesãos, onde o uso da palavra reconciliação não tinha (ou não tem) outro valor senão o de ser uma ferramenta mágica de propaganda. Dúvidas houvesse, era só decifrar o rosário de disparates do ministro da Justiça, responsável da comissão, e a sua retórica prostituída que chegou ao cúmulo de afirmar não ter havido culpados no banho de sangue do 27 de Maio. Por conta da insanidade colectiva que se apoderou do país, os assassinos (no seu conceito) também foram vítimas, tanto quanto as pessoas que torturaram e mataram.
Um raciocínio enviesado e não menos contraditório, eis o que transparece desta argumentação enganosa. Vejamos: se todos foram vítimas e produto de uma circunstância funesta, logo a acção que deu lugar ao descalabro do 27 de Maio não surgiu do nada, teve uma causalidade. Por conseguinte, quem praticou assassinatos (e foram bastantes os agentes do Estado a fazê-lo) não se conduziu de moto próprio, agiu em obediência a ordens superiores. Deste modo, pergunta-se: donde provieram essas ordens? Certamente que das mais altas instâncias do partido e do Estado. Melhor dizendo, do palácio presidencial, se tivermos presente que as máquinas de repressão jamais operaram ao arrepio da vontade do grande chefe. Seria temerário que alguém nas engrenagens de comando ordenasse a execução de milhares de angolanos sem conhecimento ou beneplácito de Agostinho Neto. Indiscutivelmente, o supremo esteve no epicentro da tragédia como seu principal responsável ideológico e dela são cúmplices outras figuras do seu círculo de ferro.
Sucede, porém, que estas questões que deveriam estar no centro das preocupações da comissão e serem objecto de investigação, análise e discussão em secções especializadas, foram simplesmente alijadas e taxadas de importunas e desajustadas daquilo a que os próceres do regime chamam “espírito angolano de reconciliação”. Ou seja, para a comissão, não é importante proceder a um levantamento sério e rigoroso do extermínio, suas causas e consequências, e determinar a identidade dos culpados. É uma perspectiva de trabalho (nas palavras do ministro da Justiça) não enquadrável no modelo nativo de reconciliação. Falar em culpados é extemporâneo, não serve à causa da paz, a prioridade é o perdão entre todas as partes.
Conclusão: diante destas evidências, ficou claro que nada de construtivo se podia esperar daquele órgão na gestão do conflito de 27 de Maio. Em vez de uma gestão imparcial, despida de partidarismos e pautada por um modelo abrangente de participação alargada da sociedade civil, o regime do MPLA optou por perverter todos os princípios razoáveis. Do alto do seu autoritarismo e fundamentalismo, impôs à comissão, sob a vigilância dos militares, uma gestão que eu qualifico de gestão das elites, uma vez que o processo foi conduzido de cima para baixo, quando deveria ter sido de baixo para cima.
Foi tal a inversão operada na lógica natural do processo, que a voz da sociedade civil na comissão praticamente não existiu. Foi abafada, nunca se fez ouvir. Se ela esteve lá (ou está), a sua presença permanece invisível. Não são meia dúzia de finórios cooptados pelo poder político, de uma duvidosa Fundação 27 de Maio, que dão substância e representação à generalidade da cidadania. Nenhum dos métodos aplicados noutras geografias do mundo (África do Sul, Argentina, Chile e Uruguai, para citar alguns bons exemplos), que abriram caminho para se avançar com sucesso na direcção de um entendimento entre as partes, nenhum desses métodos fez escola em Angola. Por má-fé, o Governo descartou o modelo de gestão democrática recomendado pelas Nações Unidas que prescreve como regra básica a necessidade de tudo ser discutido sem reservas: quem matou, porque matou e onde matou. Só desta maneira se torna possível lançar luz sobre os crimes que marcam a história dos regimes tirânicos e sangrentos.
Ora, tentar pôr de pé uma outra arquitectura de reconciliação sem levar em conta crimes que o Estado é obrigado a processar e a punir, como os crimes de lesa-humanidade, é um sinal de ruptura com os preceitos do direito internacional em matéria de direitos humanos. Seja como for, este é o caminho escolhido e trilhado pelo regime de Luanda: promover uma reconciliação baseada no esquecimento da história e na impunidade dos açougueiros do 27 de Maio. Se a falta de justiça é grave para toda a sociedade, mais o é na medida em que fere as vítimas da ditadura com um novo pesadelo. Perpetua simbolicamente o assassínio dos desaparecidos forçados e desonra os sobreviventes com a sensação de continuarem encarcerados.
O Estado capitaneado por Agostinho Neto criminosamente falhou na sua relação com a cidadania. Alienou o seu dever de proteger a vida das pessoas e a sua integridade e fomentou durante dois anos (de 1977 a 1979) toda uma emaranhada teia de perseguições e mortes. Querer agora a comissão passar uma esponja por cima deste amontoado de patifarias e aniquilação de vidas humanos, é injurioso e um novo insulto para quem sofreu aviltações de toda a ordem. Significa, enfim, um novo crime de lesa-humanidade depois dos crimes do passado. Tais delitos não prescrevem, são permanentes. Logo, tentar iludi-los ou apagá-los equivale a promover um eterno retorno ao 27 de Maio e a reeditar o seu “cortejo barroco de monstros e de obcecados”, para usar uma expressão de Alina Reys, escritora francesa[1].
É bem verdade que o desfecho deste processo de mentiras na comissão tinha um fio condutor bem definido e o seu desfecho era mais que previsível. O desenlace, tivemo-lo agora com a triste cena protagonizada no último dia 26 de Maio pelo general João Lourenço no seu famigerado discurso de pedido de perdão. Um teatro bem montado com fortes ressaibos religiosos onde as alusões à culpa e à penitência pareciam inspirar-se em trechos de fundo bíblico.
Sem surpresa alguma, o general referendou as teses da sua comissão e entrincheirou-se na sórdida narrativa da “tentativa de golpe de Estado” e na morte de meia dúzia de dignitários do MPLA dentro de uma ambulância para assim justificar a medonha repressão que decapitou milhares de vidas humanas. No entanto, logo a seguir pediu desculpas por tanta desumanidade e, acto contínuo, apressou-se a dizer não ser razoável, apesar de tudo, apontar o dedo a culpados. O justo, sublinhou, é todos pedirem perdão uns aos outros e irmanarem-se em torno da paz num exercício de purgação de ressentimentos.
Dito por outras palavras, o general propôs às vítimas que sejam capazes de interiorizar a “metafísica do verdugo” e terem a humildade de perdoar. De perdoar os demónios da polícia e das Forças Armadas do MPLA que tanto mal fizeram aos angolanos. A isto respondo com o meu declarado niilismo: não me peçam atitudes de conformismo, eu fui um dos humilhados no 27 de Maio, várias vezes me violentaram as carnes e várias vezes tentaram estilhaçar a minha dignidade com acusações obscenas. Vi as chamas do ódio e do inferno humano crepitarem à minha volta e vi os esgares de boçalidade nos meus carrascos, só possível em filmes de terror. Vi igualmente enxurradas de gente a desaparecer na voragem daquele holocausto totalitarista. Por isso, não me peçam empatia com essa reconciliação e perdão em troca da impunidade das bestas do Inferno. Em especial dos senhores que ocupavam as mais altas poltronas na direcção do MPLA e do Governo, entre os quais Agostinho Neto, o principal, que permitiu o vandalismo de sangue que traumatiza até hoje a comunidade nacional. Nestas condições, nenhuma reconciliação é exequível.
A identificação dos algozes e dos seus mentores em praça pública resulta assim, a meu ver, de um dever inviolável de consciência, não abro mão dele, não aceito coerções do Estado. “Só perdoa realmente [diria Jean Améry, ensaísta e filósofo austríaco que padeceu como judeu vexames em Auschwitz] quem consente que a sua individualidade se dissolva na sociedade e seja capaz de conceber-se como função da roda colectiva. Quer dizer, como sujeito embotado e indiferente. Só esse indivíduo aceita com resignação os acontecimentos, tal qual aconteceram. Aceita, como reza um lugar-comum, que o tempo cura as feridas”[2].
Termino dizendo que já não me surpreendem as estéticas de falsidade no MPLA e no seu executivo. O que poderia ter sido uma jornada memorável de revelação da verdade sobre o 27 de Maio (o perdão acompanhado pelo nome dos culpados daquela hecatombe) transformou-se numa consagração da mentira. As palavras certas e justas ficaram por pronunciar e jazem aferrolhadas nos subterrâneos do silêncio e dos conchavos da militância irracional.
João Lourenço frustrou o seu próprio regozijo ao não receber os fartos aplausos que ele por certo esperaria. Não lhe rendo um só elogio, ele não produziu um discurso sério, voltado para o futuro. Mais uma vez a liturgia do autoritarismo e do sectarismo levou-o a não perceber que Angola é maior do que o seu MPLA e que os problemas do 27 de Maio estão longe de ser solucionados e que não se esgotam no seu partido. Obstinadamente agarrado ao catecismo da sua organização política, ele atropelou a verdade sem nenhum rebuço, manipulou a memória trágica do passado e o que conseguiu, afinal de contas, foi deixar a sociedade ainda mais escrava da dor. Sem respostas. Os algozes do 27 de Maio agradecem-lhe. Fica demonstrado que o MPLA é um partido apodrecido que traz dentro de si a escuridão e que João Lourenço tem as orelhas entupidas por força da insustentável arrogância que lhes advém do exercício do poder omnipotente.
Pela enésima vez as feras assassinas do 27 de Maio venceram. A comissão cumpriu fielmente o seu papel de reboque do MPLA e dos militares seus escudeiros e passará à história como um panteão de absurdos e embustes.
[1] Alina Reys. Nus Diante dos Fantasmas: Franz Kafka e Milena Jasenská[tradução de Mário Matos e Lemos], Mem Martins, Editorial Inquérito, 2000, p. 17.
[2] Jean Améry. Más Allá de la Culpa Y la Expiación. Tentativas de Superación de Una Víctima de la Violencia [traducción, notas y presentación de Enrique Ocaña], Valencia, Pre-Textos, 2001, p. 152.