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Portugal: De Mimoso à Exonerador Implacável. “A vingança de João Lourenço à Clã dos Santos”

“A Corte de Luanda” é uma investigação do Observador sobre a rede de poder que se formou à volta de José Eduardo dos Santos e da sua família. Durante vários meses, uma equipa de jornalistas percorreu milhares de quilómetros e contactou dezenas de fontes — em Portugal e, principalmente, em Angola.

Se até aí tudo parecia decorrer à porta fechada, João Lourenço tratou de escancará-la. De caneta presidencial em riste, afastou várias das chefias do josé-eduardismo, começando na banca pública, passando pelos serviços de informação de segurança civil e militar e culminando no que mais doía ao seu antecessor: a família.

De “Mimoso”, passou a ser “Exonerador Implacável”, merecendo gáudio e espanto dentro e fora de Angola, nas ruas e nas redes sociais.

Em novembro, ainda não passavam dois meses da sua tomada de posse, exonerou Isabel dos Santos do cargo de presidente da Sonangol. Além disso, suspendeu o contrato público assinado pela Semba Comunicações, empresa audiovisual detida pelos filhos do Presidente, Coréon Dú e Tchizé dos Santos, com a TPA2 e a TPA Internacional. Dois meses mais tarde, José Filomeno dos Santos era retirado da liderança do Fundo Soberano de Angola e em setembro de 2018 era preso preventivamente, sob a acusação de ter tentado transferir 500 milhões de dólares do Banco Nacional de Angola para uma conta no Reino Unido.

Estas medidas garantiram a João Lourenço um forte apoio entre a população — e levaram-na a falar num tom que até então não ousara utilizar. No VI Congresso Extraordinário do MPLA, em setembro de 2018, em que a presidência do partido passou de José Eduardo dos Santos para João Lourenço, este último foi duro como nunca com o seu antecessor.

Sentado na fila da frente, e tendo por trás centenas de jovens da Juventude do MPLA, José Eduardo dos Santos foi obrigado a ouvir do seu sucessor uma lista dos “males a corrigir” em Angola: “A corrupção, o nepotismo, a bajulação e a impunidade”. A sala irrompeu em aplausos, até que João Lourenço voltou à carga.

É certo que no início no discurso tinha referido en passant o “Arquiteto do Paz”. Mas logo a seguir foi ao que queria. Ou seja, à jugular: “Estes males apontados aqui são o inimigo público número 1 contra o qual temos o dever e a obrigação de lutar e de vencer. Nesta cruzada de luta, o MPLA deve tomar a dianteira, ocupar a primeira trincheira, assumir o papel de vanguarda, de líder. Mesmo que os primeiros a tombar sejam militantes ou mesmo altos dirigentes do partido”. Neste momento, novo aplauso. Quem assistiu ao discurso na TPA, pôde ver de imediato a reação de José Eduardo dos Santos: rodeado por uma ovação que lhe era hostil, sorriu em desconforto, sem aplaudir.

Em novembro de 2018, João Lourenço deu ao Expresso aquela que é até hoje a sua entrevista mais franca desde que assumiu funções. Nela, sublinhou repetidas vezes que não houve uma passagem de pastas da anterior presidência para a sua (“esperava uma verdadeira passagem de pasta em que me fosse dado a conhecer os grandes dossiês do país e isso, de facto, não aconteceu”), indicou que Bornito de Sousa não era uma escolha sua (“não temos de trabalhar só com os amigos, conterrâneos ou familiares”) e acusou os seus antecessores de terem esvaziado tudo à saída: “Esta é a situação que encontrámos: os cofres do Estado já vazios com a tentativa de os esvaziarem ainda mais!”.

Pela primeira vez, José Eduardo dos Santos quebrou o silêncio. Numa conferência de imprensa convocada à pressa para uma sala exígua da Fundação Eduardo dos Santos (FESA), o ex-Presidente falou durante dez minutos sem direito a perguntas dos jornalistas ali presentes. Com a voz trémula e um olhar distante, disse que queria fazer uns “esclarecimentos sobre a forma como nós conduzimos a coisa pública” e sublinhou: “Não deixei os cofres do Estado vazios quando na segunda quinzena do mês de setembro de 2017 fiz a entrega das minhas funções ao novo Presidente da República”.

João Lourenço e a nova justiça angolana não ficaram por ali.

Tchizé dos Santos, que foi eleita deputada do MPLA nas mesmas eleições que consagraram João Lourenço, foi afastada do cargo e perdeu o assento parlamentar. Coréon Dú deixou a sua empresa e saiu do país. E Isabel dos Santos e o marido, o congolês Sindika Dokolo (que morreria em outubro de 2020 num acidente no Dubai), viram todos os seus ativos em Angola serem congelados. Ao Observador, numa entrevista em dezembro de 2019, Isabel dos Santos queixou-se de uma “perseguição à família do antigo Presidente dos Santos” e admitiu que já não ia a Angola desde 2018 por temer pela sua segurança no país. “Para mim, Angola não seria um sítio seguro porque há muito crime”, disse. “Genericamente. Mas também especificamente para mim, sem dúvida.”

“Há uma ferida presente entre os dois homens. Isto que o João Lourenço está a fazer hoje é em absoluto um ato de vingança. Ele está a vingar-se de qualquer coisa cuja raiz nós não conhecemos ainda. Ainda é muito cedo. Ele próprio não diz o que é que esconde este conflito. Porque há um conflito entre estas duas personalidades.”

A velocidade dos acontecimentos, e a ferocidade com que eles eram postos em prática, surpreendeu todos. Entre as fontes do Observador muitos apontam para um ato de vingança política, depois de José Eduardo dos Santos ter engavetado João Lourenço.

A tese da vingança é defendida inclusive entre os mais próximos de João Lourenço. Ao Observador, uma fonte do Governo do atual Presidente de Angola diz que “José Eduardo dos Santos bebeu do seu próprio veneno”. “Não conhecia as aspirações mais verdadeiras do João Lourenço e pensou ‘Ele vai-me agradecer para o resto da vida por eu o escolher para Presidente da República’”, diz essa fonte, que garante que José Eduardo dos Santos não queria outra coisa que não um “títere”. “Pensou que ele era um homem que seria possível dominar”, diz.

Foi tudo isso, mas ao contrário.

“Isto que o João Lourenço está a fazer hoje é em absoluto um ato de vingança. Ele está a vingar-se de qualquer coisa cuja raiz nós não conhecemos ainda. Ainda é muito cedo. Ele próprio não diz o que é que esconde este conflito. Porque há um conflito entre estas duas personalidades”, diz o historiador Carlos Pacheco. “Há uma ferida presente entre os dois homens.”

O desfecho que a família de José Eduardo dos Santos conheceu foi algo que ninguém previu, pelo menos em voz alta, antes de João Lourenço ter precipitado todos estes acontecimentos. “Toda a gente foi surpreendida e quem disser o contrário engana-se ou quer enganar”, sublinha uma fonte do MPLA. “Se tivessem ouvido João Lourenço com atenção, ele já tinha avisado toda a gente do que vinha aí. Só não acreditou quem não quis”, diz outra fonte do comité central do MPLA. A mesma pessoa, porém, reconhece que o próprio José Eduardo dos Santos não quis acreditar no que ouvia quando João Lourenço prometia, em campanha, combate à corrupção. “O Presidente José Eduardo dos Santos foi apanhado de surpresa”, garante.

Não é certo que alguma vez José Eduardo dos Santos e João Lourenço tenham falado a sós sobre o tema do combate à corrupção — e o alcance que viria a ter. Um antigo governante português, conhecedor da política angolana, refere que houve conversas entre João Lourenço e José Eduardo dos Santos sobre aquele tema.

“Um membro do Bureau Político do MPLA disse-me que houve um acordo não escrito entre a elite do partido”, diz ao Observador a investigadora da Universidade de Oxford Paula Cristina Roque. “Alegadamente o entendimento era de que haveria uma tabula rasa. Ou seja, não tocariam de maneira nenhuma nas pessoas que cometeram atos de corrupção e má gestão no passado, mas quem quem o fizesse de 2017 para a frente arriscaria consequências legais”, continua aquela investigadora.

Uma fonte diplomática conta ao Observador que terá havido uma reunião em que o tema da luta contra a corrupção foi abordado entre José Eduardo dos Santos e João Lourenço. “Mas o que ficou ali provado foi que, além de péssimos a falar, eles são ainda piores a ouvir”, afiança esta fonte. “Terá sido uma conversa entre dois surdos, em que cada um ouviu só aquilo que lhe interessava”, sintetiza a mesma pessoa.

Outra fonte, que conhece o atual Presidente, descarta a possibilidade de este ter chegado a qualquer entendimento com o statu quo que o antecedeu. “O João Lourenço não é tipo para fazer acordos”, diz. “João Lourenço entendeu uma coisa que José Eduardo dos Santos não quis entender”, continua a mesma pessoa. “É que há líderes que quando perdem os cargos conseguem manter o respeito e a influência. E depois há outros que não conseguem.”  

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