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Portugal: Fotografia de José Eduardo dos Santos (JES) está a ser “apagada” do MPLA

José Eduardo dos Santos parece estar completamente sozinho, mas ainda tem muitos aliados e muita fortuna, diz Paulo Inglês. A animosidade visível em 2017 e início de 2018 em relação ao ex-Presidente tem-se vindo a esbater. 

“A intensidade dessa raiva”, acumulada nos muitos anos em que a família Dos Santos “esteve sentada na cadeira do poder”, foi-se dissipando e “hoje José Eduardo é um ‘mais-velho’ na cabeça de muitas pessoas, merece algum respeito, e, dizem alguns, nem tudo foi mau nos tempos dele”, afirma ao Observador Ricardo Soares de Oliveira.

Em alguns círculos, “até há uma certa forma perversa de admiração de Isabel dos Santos, uma angolana que mesmo assim, dizem, se ‘conseguiu desenrascar lá fora’” continua o professor de estudos africanos da Universidade de Oxford. Muitos elogiam o facto de a “Princesa” ter investido algum dinheiro em Angola e criado empregos. Esta complacência, no entanto, “não significa muito politicamente para Isabel ou para JES”, conclui Ricardo Soares de Oliveira. Mas essa é outra história.

Desde fevereiro último que “começaram a eliminar a imagem de JES dentro de instituições do MPLA, por vezes omitem o nome dele quando se fala dos presidentes do partido”, revela Sedrick de Carvalho, um dos revus. Basicamente, “passou de semi-deus a pária”, comenta Luaty. E em julho começaram a circular novas notas sem o rosto de José Eduardo dos Santos.

Como ficará a fotografia do ex-Presidente na história de Angola? Mais “negativa do que positiva”, acredita Filomeno Vieira Lopes, que não deixa de acentuar que JES não agiu sozinho, a avaliação que se fizer dele terá de ser conjunta: “Isto é um sistema, está um partido implicado”. Quanto à história, acrescenta, “se os historiadores tiverem liberdade para analisarem as coisas, provavelmente poder-se-à chegar a outras posições um pouco mais dramáticas”.

Ficará como um ditador, não duvidam por um segundo Rafael Marques e Luaty Beirão, com o rapper a carregar no tom: “Qualquer pessoa que tenha uma Constituição que lhe dá superpoderes que ainda por cima nem respeita, que está acima da lei, isto é, seja o senhor da lei, a própria lei, só pode ser um ditador. Ele era o mal, o cancro do país.”

Marcolino Moco não vai tão longe: “Evito usar a palavra ditador. Se José Eduardo fosse como Idi Amin eu já não estaria vivo. Mas ele, nos últimos anos, foi pior que Salazar”.

O historiador angolano Patrício Batsîkama também foge da palavra. “Os jornais todos os fins de semana publicavam [em 2017, quando deixou a Presidência] que ele era ditador… Depende do que se entende por ditador… Só se for num conceito eurocêntrico. Tenho sérias reservas em qualificá-lo como tal.”

“Alguma habilidade teve que ter no contexto da Guerra Fria”, concede Sérgio Calundungo. “Tem o mérito de o país não ter descambado em questões tribais (era muito jovem quando assumiu o poder), e nos primeiros anos teve a habilidade de harmonizar e acomodar as grandes elites partidárias — muitos deles mais velhos do que ele. Teve a responsabilidade de fazer a transição de um sistema de partido único para um sistema multipartidário, teve o desafio de lidar com um líder que era carismático — Jonas Savimbi — e chegar a um processo de paz.”

Alguns portugueses contactados pelo Observador são cautelosos no uso do termo, mesmo sabendo que investigadores das Nações Unidas reportaram detenções arbitrárias, tortura e abusos dos direitos humanos em Angola, e não apenas em Cabinda. Ou que a Freedom House considerou Angola um “país não livre”, pois José Eduardo dos Santos e o MPLA perseguiam jornalistas, ativistas e líderes religiosos.

“Os críticos e os que protestam foram encarcerados, espancados, torturados ou executados”, escrevia Tom Burgis em A Pilhagem de Angola (2015). Angola não é um Estado policial, reconhecia este jornalista norte-americano, mas o “medo é palpável”, “toda a gente percebe que é potencial alvo”, até “o chefe dos serviços secretos pode ser saneado”, como aconteceu com Miala. “Ninguém quer falar ao telefone porque parte do princípio que está sob escuta” continuava Tom Burgis — uma realidade que ainda hoje, quando se fala em mudança de paradigma com João Lourenço, o Observador experimentou com alguns angolanos que ouviu para este artigo, quer em Lisboa, quer em Luanda.

O diplomata António Monteiro, que esteve envolvido no processo de paz e que durante nove anos foi chairman do Millennium BCP, do qual a petrolífera estatal Sonangol é acionista, e agora é presidente da Fundação Millennium, exclui a definição “ditador” por comparação com outros tiranos africanos: “JES marca a pacificação e a reconstrução do país, e falha no desenvolvimento equilibrado, tarefa principal que está a ser realizada pelo atual Presidente João Lourenço em condições difíceis”.

Um político português de direita conhecedor de Angola, que optou por não dar o nome para este trabalho, prefere “um ditador que não grita nem faz ameaças, que é silencioso, a um que manda cortar cabeças”. Chama-lhe antes um “autocrata sereno”. Já o administrador e antigo militante do MPLA que foi torturado não tem dúvidas: “Era um ditador, toda a gente estava ali para o servir, mas fugia ao perfil comum dos ditadores. Frio, implacável e calmo, não deixa de ser fascinante como figura política”.

Contrariamente aos outros ditadores, como Kadhafi, por exemplo, “ não tinha ninguém disposto a morrer por ele”, diz José Eduardo Agualusa. “Ninguém o seguia pelo seu carisma ou pensamento. Apenas por interesse. Não tinha amigos.”

José Eduardo dos Santos nunca mais voltou a Angola. Não há razão para não o fazer, diz Mário Pinto de Andrade. “Todos nós angolanos — e o próprio MPLA e o presidente JLo —, queremos que ele regresse. O Presidente JES não fez mal ao MPLA, não fez mal ao país, é o homem que nos deu a paz. Queremos que viva aqui tranquilo e acabe os seus dias em Angola. Pode voltar porque ninguém lhe vai fazer mal, um homem como ele, com a idade que tem, merece todo o nosso respeito.”

Angola “é um lugar onde devemos estar todos nós”, defende o primo de Mário, Justino Pinto de Andrade, que há muito se afastou do MPLA e agora é oposição pelo Bloco Democrático. “Eu fui adversário de José Eduardo dos Santos, mas não é assim que um indivíduo deve terminar. Entristece-me esse fim. Quer queiramos quer não, foi um lutador pela independência de Angola, sonhou com uma Angola independente, governou este país durante 38 anos. Cometeu uma série de erros, mas também fez coisas positivas. Merece estar em Angola se assim o quiser e a saúde o permitir. Porque, senão, todos os futuros dirigentes terão que fugir de Angola. Se damos este mau exemplo agora com JES, garanto que quando acabar o poder de João Lourenço, ele também sai.”

David Mendes vai mais longe na defesa do regresso de JES. Propõe uma aproximação mediada pela Igreja ao antigo Presidente. “Dentro da nossa boa maneira africana, podíamos usar os mais velhos, como o cardeal Dom Alexandre do Nascimento, o bispo Emílio de Carvalho, por exemplo, para falar com Dos Santos. O cardeal é mais velho, ele vai ouvi-lo — mesmo não querendo, vai ouvi-lo — e pode influenciá-lo. Precisamos de uma figura que consiga congregar as pessoas.”

Mais cedo ou mais tarde, José Eduardo “vai ter de regressar” e “não vai ser preso”, crê um ex-político angolano que esteve envolvido na luta pela independência. “Esperemos só que não seja empurrado por Espanha. João Lourenço, que é teimoso e imprevisível, pode fazer com que isso aconteça”.

Por agora, sozinho com os seus guardas em Barcelona (que apenas deixou neste Natal para ir ter com Isabel ao Dubai, depois de faltar ao funeral do genro em Londres), onde recebe por vezes a visita das filhas e de um ou outro dos seus indefetíveis generais, José Eduardo dos Santos tem alimentado (ou alguém por ele) a sua página oficial do Facebook, a do JES Patriota, como disse que gostaria de ser recordado, com momentos do seu passado glorioso. É um homem doente e enfraquecido como se pode ver no vídeo em que agradece as mensagens de parabéns pelos 78 anos celebrados no dia 28 de agosto e que Tchizé partilhou no Instagram.

Pela primeira vez em muitas décadas celebrou o dia de anos sozinho, sem a companhia da família. Está a 8.500 quilómetros do bairro onde se diz que nasceu e ia jogar futebol com o seu amigo Bonga. Não pode ouvir Maria, sentada no chão, a cortar carne para um alguidar azul no meio das pernas, enquanto canta na tarde fervilhante de domingo no Sambizanga. Talvez ainda ouça Yola Semedo, uma das suas artistas angolanas prediletas, a cantar “tu és o poder”. Mas não se pode iludir. Já não é o poder. Angola já não é dele.

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