Foi aqui, no Sambizanga, que o senhor absoluto dos destinos angolanos durante 38 anos nasceu, a 28 de Agosto de 1942. O Antigo Presidente vinha aqui jogar, num campo de desporto próximo.
Isto tudo fechava, enchia-se de tropa, um dia antes de ele vir dormíamos cercados”, conta Francisco Bastos, que antes de se sentar a uma máquina de costura “exercia a vida militar” de que pensou desertar.
Mas “dizer que ele nasceu cá é impossível“. “Os mais velhos dizem que não, ninguém conhece os pais dele nem a casa dele”, garante, erguendo a voz para se fazer ouvir entre os cânticos vindos de uma igreja evangélica ali ao lado.
O mesmo dizem Nando Silva, de 67 anos, Horácio Virgílio, de 49, e Tó Zé, de 39. “Quando começaram a dizer isso fomos pesquisar, andámos por todo o bairro a perguntar a toda a gente onde ficava a casa deles, e ninguém soube dizer nada”.
A terra natal de José Eduardo dos Santos não tem escapado à controvérsia. Há uns anos, membros da oposição política questionaram-lhe a naturalidade, exibindo uma cédula de nascimento, que uns dizem ser falsa, em que o local de nascimento é Almeirim, em São Tomé e Príncipe, e o nome registado é José Eduardo Van-Dunem.
Teve de inventar lágrimas para se matricular no Salvador Correia, o liceu das elites de Luanda. O prazo para se inscrever terminava nesse dia, mas ele não tinha o certificado necessário pronto e o irmão Avelino, em puro desenrascanço, pediu-lhe que usasse a saliva para simular choro e desespero e assim convencer a funcionária a ser flexível. Resultou.
A biografia oficial é clara: nasceu em Luanda, ponto final. Quanto ao apelido, é sabido que fazia parte do ramo mais pobre desta conhecida família de Angola, os “Van-Dunem do quintal por oposição aos Van-Dunem de casa” explica ao Observador um jornalista angolano que prefere falar sob anonimato. José Eduardo ter-se-à sentido ostracizado pela parte rica da família e, por isso, “como bom estalinista”, apagou o apelido do nome. Porém, quando o pai morreu e se tornou público que o avô Avelino Francisco Pereira dos Santos Van-Dunem pertencia à família, José Eduardo não deixou de atirar a um amigo: “Então, pensavam que eu não tinha família? Pois eu também sou Van-Dunem!”
O pai, Eduardo Avelino dos Santos Van-Dunem, fora emigrante em São Tomé. Regressado a Luanda com a mulher, Jacinta José Paulino, moraram numa casa de adobe com os dois primeiros filhos, Isabel e Avelino, que acabou destruída por uma chuva torrencial. Ergueram então uma de chapa onde, num “ambiente de extrema pobreza”, o futuro inquilino do Palácio da Cidade Alta nasceu, alegrando o casal que perdera há pouco tempo uma filha, narrou o irmão mais velho ao Jornal de Angola.
Coube a Avelino, que morreu em 2016, escolher o nome para aquele bebé débil: “Ninguém contava que ele fosse viver e eu, como já era crescido, chamei-lhe Viajante, quer dizer, alguém que apenas vem e vai embora”, cita-o o historiador angolano Patrício Batsîkama, na sua tese de pós-doutoramento As heranças simbólicas que José Eduardo dos Santos legou para a 3ª. República de Angola.
O Viajante, como é tratado pela família, sobreviveu e cresceu sob o olhar atento dos dois irmãos mais velhos (tem mais três: Luís, Lucrécio e Marta). O pai, calceteiro da Câmara de Luanda, e a mãe, quintandeira (vendia no mercado próximo de casa, o de São Paulo, que ainda hoje se impõe, frenético, na paisagem do bairro), saíam muito cedo de casa e José Eduardo ficava à guarda de Isabel. Um cuidado de que nunca se esqueceu: homenageou a irmã dando o seu nome à primeira filha, revelou Isabel dos Santos à TPA.
O pai mostrava-se estrito: “Obrigava-nos a levantar cedo para ajudá-lo nas atividades de pedreiro. Tinha um feitio… Quando acordasse, às 5h00, ninguém mais podia ficar na cama. Sempre nos incutiu uma educação rígida. No bairro ou na rua tínhamos de obedecer e respeitar as pessoas. Essa rigidez moldou o nosso carácter”, confessou Avelino ao Jornal de Angola.
José Eduardo entrou para a escola primária do bairro e depois para a da Missão Evangélica: os dois avôs eram pastores metodistas e ele fez parte do grupo de jovens desta igreja.
Feita a quarta classe, teve de inventar lágrimas para se matricular no Salvador Correia, o liceu das elites de Luanda. O prazo para se inscrever terminava nesse dia, mas ele não tinha o certificado necessário pronto e o irmão Avelino, em puro desenrascanço, pediu-lhe que usasse a saliva para simular choro e desespero e assim convencer a funcionária a ser flexível. Resultou.
Os problemas não terminaram aí. Faltava ainda o dinheiro para pagar as propinas. Avelino pediu isenção para o irmão e nada. Não desistiu: fez “duas mesinhas de cabeceira e um beliche para oferecer aos dois chefes da administração central”. Resultou. Tornou-se assim num dos primeiros negros a frequentar aquela escola nos anos 50, assinala a escritora e poeta angolana Ana Paula Tavares ao Observador.
No liceu — hoje Escola Mutu Ya Kevela, nome do rei Kaluanda que se revoltou contra os portugueses em 1902 —, onde foi contemporâneo do político Miguel Anacoreta Correia, não se destacou. “Muito reservado, as pessoas conheciam-no fundamentalmente do futebol, era um excelente interior esquerdo”, diz o ex-deputado do CDS ao Observador. Chegou a fazer parte da equipa do Futebol Clube de Luanda e nunca perdia uma oportunidade para jogar. Uma paixão que lhe ficou para sempre, sendo um adepto fiel do Futebol Clube do Porto.
Também jogava voleibol e basquetebol: anos depois, já Presidente, no Futungo de Belas, continuava a encestar, para além de treinar no ginásio com um personal trainer. Um hábito que não perdeu quando deixou o poder e a Cidade Alta e passou para Miramar.
Para ajudar a família, arranjou emprego na farmácia do hospital Maria Pia e entregou o primeiro salário ao irmão Avelino. Entre o trabalho, a escola e o futebol, ainda lhe sobrava tempo e vontade para a música. “Ofereci-lhe a primeira viola, feita por mim” contou o irmão Avelino. Revelou-se como guitarrista, cantor e compositor nos Kimbambas do Ritmo (fundado em 1959) e, depois, no muito efémero Derrepente que se transformou no conjunto Nzaji ( trovão, ou faísca, em kimbundu), consolidado na URSS (onde ajudou a dar a conhecer Angola, palavra que os russos confundiam com Mongólia) e tornando-se no grande nome da canção revolucionária dos anos 60 e 70.
Ainda adolescente, “JOES”, como também era tratado, envolveu-se na política com os grupos clandestinos dos bairros suburbanos de Luanda que lutavam pela independência de Angola.
A música, como já se percebeu, não ficou de fora. Não só tocava guitarra e cantava, como compunha. Patrício Batsîkama garante ao Observador que José Eduardo dos Santos é o autor de uma canção folclórica muito popular: “Kaputu Mwangolê”, com a letra “os portugueses em Angola querem matar os angolanos”. A conhecida canção “Ivuenu, Ivuenu, Anangola”, também tem a sua assinatura segundo revelou em 2013 Maria Mambo Café, que cantou no Nzaji, bem como alguns trechos e arranjos do hino do MPLA, criado antes de 1963.
Continuou a escrever e a interpretar canções de intervenção na República Democrática do Congo, então Zaire – em Leopoldville (Kinshasa, a partir de 1966) –, onde dava aulas de português aos refugiados angolanos, tocava no projeto embrionário do Nzaji e dizia poesia de Agostinho Neto e António Jacinto. Isto para além de formar um clube de futebol, o Ngola Livre (o nome a denunciar logo a sua ação política, Ngola significa Angola) que, segundo Patrício Batsîkama, era visto pela PIDE (Política Internacional e de Defesa do Estado português) como uma “sombra do MPLA” já que o equipamento da equipa tinha as mesmas cores do movimento.
A música acompanhou-o também na URSS (tal como o futebol, terá feito parte do Neftchi, da primeira liga soviética, embora nunca tenha saído do banco): lançou um disco com quatro canções suas. Quando fez 72 anos, o filho Coréon Dú (que hoje, depois do “Luanda Leaks”, diz que “ninguém escolhe a família em que nasce”) e o cantor angolano Matias Damásio ofereceram-lhe um CD que reeditava essas canções revolucionárias, como a “Doutor Neto”.
O gosto pela música foi ainda mais duradouro do que o poder totalitário. Fã incondicional da brasileira Roberta Miranda (que disse ter sido acordada um dia às 3h da manhã por um telefonema do Presidente angolano que queria a sua opinião sobre “a política e o povo locais”), convidou-a mesmo para o seu casamento com Ana Paula dos Santos.
Gostava de Roberto Carlos, mas foi a Seal que o então Presidente ofereceu um livro de fotografias de Angola depois de o ver dançar com Ana Paula dos Santos, num jantar de angariação de fundos para a Fundação Lwini, fundada pela então primeira-dama em 1998.
Embora não se soubesse quase nada sobre o quotidiano de José Eduardo dos Santos, uma coisa era certa: gostava de ver televisão, “por volta das seis e meia da tarde”, quando passavam “programas virados para a juventude”, e entusiasmava-se com os jovens cantores dos videoclipes, “mesmo os mais alternativos”, contou a filha Tchizé à TV Zimbo em 2012.
Contudo, não optou por um dos nomes da nova geração quando quis surpreender a mulher e mostrar que, aos 71 anos, a voz não lhe faltava (a afinação um pouco). Zédu, a alcunha que o popularizou, pegou numa guitarra e cantou no aniversário de Ana Paula dos Santos um tema de amor lançado em 1964 pelo brasileiro Lindomar Castilho, “Alma, Coração e Vida”.
Pormenor: adaptou-lhe a letra. Suprimiu, por exemplo, a frase “Eu, que não tenho fortuna”. Se não o tivesse feito, mentiria descaradamente. É impossível dizer-se que José Eduardo dos Santos não tem riqueza, apesar de ninguém ainda ter conseguido provar qualquer soma astronómica em seu nome. Em 2011 circulou que teria acumulado 20 mil milhões de dólares (quase 18 mil milhões de euros) o que o levou a fazer um desmentido num discurso perante o Comité Central do MPLA.
Já estava muito longe o dia em que fugira para o país vizinho, a República Democrática do Congo, com 19 anos. Avelino tinha bem presente esse momento. O irmão alistara-se no MPLA em 1956, quando o movimento surgiu, e a 7 de Novembro de 1961 abandonou Angola com medo da PIDE. Ele preparava-se para ser operado a uma hérnia e José Eduardo, que nada comunicou aos pais, apareceu com um amigo para se despedirem. “Vi que eles estavam decididos e não contrariei. Não valia a pena. Ofereci-lhes algumas roupas e calçado e desejei-lhes boa sorte”, justificou ao Jornal de Angola.
Só voltou a ter notícias do irmão através de uma tia, enfermeira no antigo Zaire, que os acolhera. De resto, sabiam “que ele estava vivo” pelos postais de boas festas que José Eduardo enviava para a sobrinha Jacinta, sem palavras, só com desenhos de casas. Nem se aperceberam que ele integrara, em 1962, a guerrilha do MPLA, o Exército Popular de Libertação de Angola (EPLA).
Tão pouco se expunha, e assim se manteve nos 13 anos seguintes — a julgar pelos arquivos da Torre do Tombo, consultados pelo Observador, os radares da PIDE não se fixaram muito nele. É referenciado em 1965 como membro da direção da Juventude do MPLA, dirigida por Daniel Chipenda, e pouco mais.
A 28 de fevereiro de 1966, a polícia política portuguesa chegou a solicitar ao Serviço de Ficheiros “informação” do que constasse “acerca de José Eduardo dos Santos”. Se houve resposta, esta não integra os documentos da PIDE/DGS da Torre do Tombo. O seu nome aparece apenas em listas de angolanos a estudar na então URSS.