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Portugal: Ministra “procura” irmão. Lisboa ajuda Luanda a superar trauma histórico

A identificação dos restos mortais das vítimas da purga no MPLA que matou o irmão da atual ministra portuguesa da Justiça vai envolver uma equipa enviada de Lisboa. Pela ministra da Justiça.

Quatro técnicos portugueses do ministério da Justiça – três do Instituto de Medicina Legal e um da Polícia Judiciária – estão desde há dias em Luanda para aquela que será uma das mais complexas missões das suas vidas. Os técnicos – entre os quais um diretor adjunto da PJ, Carlos Farinha – foram enviados pelo Ministério da Justiça e o caso diz diretamente respeito à ministra titular da pasta, Francisca Van Dunem, nascida em Angola, em 1955.

A missão – enviada a pedido das autoridades de Luanda – irá trabalhar na busca e identificação dos restos mortais das vítimas do mais traumático acontecimento no MPLA, desde que, em novembro de 1975, Angola se tornou independente: o chamado “27 de Maio” de 1977 (uma purga interna que durou dois anos e na qual terão sido executadas cerca de 30 mil pessoas, segundo a Amnistia Internacional).

Entre as vítimas contam-se familiares de Francisca Van Dunem: o irmão, José, e a cunhada, Sita Valles. Quando foram fuzilados – nunca tendo os seus corpos sido descobertos, como aliás aconteceu com milhares de outras vítimas – tinham um filho pequeno, João, cuja educação ficaria a cargo da atual ministra da Justiça.

O regime do MPLA – tanto sob a liderança de José Eduardo dos Santos como agora de João Lourenço – nunca reconheceu os acontecimentos como uma purga interna. Antes os apresentou como a neutralização de uma “intentona golpista” de caráter “fracionista”, vinda do interior do partido e liderada por militantes como Nito Alves, José Van Dunem e o “Monstro Imortal” (general Jacob João Caetano). Todos estariam organizados entre si para destronar o então líder do MPLA (e primeiro Presidente da República Popular de Angola), Agostinho Neto (1922-1979).

Contudo, em maio passado, o Presidente de Angola, João Lourenço, surpreendeu o país com um pedido de desculpas às vítimas: “Não é hora de nos apontarmos o dedo procurando os culpados. Importa que cada um assuma as suas responsabilidades na parte que lhe cabe. É assim que, imbuídos deste espírito, viemos junto das vítimas dos conflitos e dos angolanos em geral pedir humildemente, em nome do Estado angolano, as nossas desculpas públicas pelo grande mal que foram as execuções sumárias naquela altura e naquelas circunstâncias”. “O pedido público de desculpas e de perdão não se resume a simples palavras e reflete um sincero arrependimento e vontade de pôr fim à angústia que estas famílias carregam por falta de informação quanto aos seus entes queridos.”

Esse “sincero arrependimento” traduz-se em duas medidas: entregar certidões de óbito aos familiares das vítimas (já há mais de dois mil pedidos); e iniciar a localização (e identificação) dos restos mortais. É nesta segunda medida que entra a equipa enviada de Lisboa.

“Perdoar os algozes”?

Falando à Lusa, Carlos Farinha disse que “tudo isto é uma realidade e um processo extraordinariamente complexo que vai demorar tempo”, podendo ser demasiado otimista o prazo de dois anos estabelecido para concluir o processo. A principal missão será cruzar o ADN das ossadas encontradas com o de familiares diretos das vítimas (filhos ou irmãos) de forma a identificar possíveis correspondências. “Estamos numa fase inicial, de desenho do procedimento, afetação de meios e espaços. É preciso fazer a recolha dos restos mortais de forma adequada, acondicioná-los em locais onde possam ser analisados, é necessário fazer análises de ADN, cruzar toda a informação das famílias reclamantes”, explicou. As ossadas que não forem identificadas serão depositadas num memorial a ser construído em Luanda, junto à Assembleia Nacional.

O advogado Edgar Valles, que perdeu dois irmãos no “27 de Maio” (Sita, já referida, e Ademar), bem como José Fuso, sobrevivente (preso cerca de dois anos e meio), salientaram esta quinta-feira ao DN que o envolvimento de Portugal “credibiliza” o processo. “Isto é como as eleições, precisa de observadores internacionais”, diz José Fuso.

O resgate dos restos mortais há muito que vinha sendo exigido pelas associações de familiares. Contudo, segundo estas, João Lourenço fica aquém do exigível no apuramento total de responsabilidades nas mortes do “27 de Maio”. “Só se podem perdoar os algozes se soubermos quem são”, acrescenta José Fuso.

Se os restos mortais forem encontrados e identificados, tal permitirá por fim aos familiares das vítimas – Francisca e João Van Dunem ou Edgar Valles, entre muitos outros – darem-lhes finalmente um funeral digno.

 

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