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Portugal: Os Médicos Cubanos em Luanda faziam “operações sem anestesia”

“As pessoas identificavam o antigo presidente angolano, José Eduardo dos Santos (JES) como a causa dos seus males, estavam fartas dele”, lembra o activista luso angolano Luaty Beirão. José Eduardo dos Santos podia ter um “bom ar, tranquilo, com aquela carinha de santo em fotografias de há 20 anos espalhada pelo o país”, Mas Ele “não conseguia criar simpatia com o seu próprio povo”. 

De uma maneira mais simples, o alfaiate Francisco Bastos no Sambizanga, ou José Teixeira, motorista da Kubinga, dizem o mesmo. “Ele não gostava do povo. Não queria saber de nós”.

Terá sido sempre assim? Rafael Marques recorre a um episódio dos anos 80 para frisar que JES “nunca teve grandes preocupações em servir o seu próprio povo”. Um investigador cubano, que esteve em Angola, conta “como nessa década Fidel Castro ficava furioso porque os médicos cubanos em Luanda faziam operações sem anestesia, porque não havia”. Segundo Piero Gleijeses, citado por Rafael Marques, “o líder cubano quis enviar medicamentos básicos e José Eduardo, durante muito tempo, adiou assinar uma carta de crédito de 600 mil dólares para que Angola tivesse medicamentos básicos. Fidel acabou por os mandar, mesmo sem pagamento, porque era preciso fazer alguma coisa.”

O ex-Presidente “não era um indivíduo com grande sensibilidade humana, de perceber os problemas do povo. Pouco lhe importava. É preciso ter uma certa vocação, também. Ou algum tipo de responsabilidade. Ele, para além de ser dirigente político, nunca trabalhou”.

Não era, pois, um Presidente de afectos. Muitos não lhe perdoam a frieza com que reagiu a algumas tragédias. Em 2015, por exemplo, chuvas torrenciais mataram 71 pessoas, 35 das quais crianças, no Lobito. JES limitou-se a emitir uma nota oficial de condolências, não foi capaz de visitar a zona, apesar de a ter sobrevoado no caminho para a tomada de posse do novo Presidente da Namíbia.

No início de 2017 morreram 17 pessoas numa tragédia no estádio do Uíge, na abertura do campeonato de futebol. Mais uma vez, só houve um comunicado da Casa Civil da Presidência. “As pessoas sentiam que ele não se preocupava com elas”, diz uma executiva de uma das mais importantes petrolíferas estrangeiras em Angola.

O pouco capital de simpatia que José Eduardo tinha foi-se desgastando nos últimos anos. As pessoas até já se queixavam de Luanda ficar cercada quando o Presidente saía da Cidade Alta, quando no passado encolhiam os ombros ao aparato de segurança que bloqueava durante horas um trânsito já de si infernal. E ridicularizavam o servilismo que antes respeitavam, em situações comezinhas como esta: JES não se sentava numa cadeira qualquer, no futebol tinha uma especial, “nos eventos também levavam uma cadeira diferente para se sentar”, ri-se um jornalista angolano.

O problema, alerta Rafael Marques, é que, “em Angola, a corrupção mata: a população é privada de recursos básicos para a sua sobrevivência”. Por isso, diz que José Eduardo dos Santos “nunca foi magnânimo“: “Um homem que mata o seu povo pela corrupção, pela incúria, pela incompetência e pela repressão não pode ser um homem magnânimo. Quem se salvou com essa magnanimidade de José Eduardo dos Santos? Aqueles que, dentro do seu próprio partido, fizeram e desfizeram e ele não fez absolutamente nada”. Resume tudo numa frase: “Para José Eduardo ter o poder que tinha, teve que destruir as bases da dignificação dos angolanos na educação e na saúde”.

“Em Angola, a corrupção mata”

Os factos, que Zédu não pode ignorar, estão aí, nos relatórios de Desenvolvimento Humano da ONU, do Banco Mundial ou da Unicef. Quando deixou o poder, perto de 40% dos então quase 25 milhões de angolanos viviam abaixo do limiar de pobreza, com menos de 1,7 euros por dia; Angola tinha uma das maiores taxas de mortalidade infantil do mundo (em cada mil crianças, 157 morriam antes dos cinco anos); a esperança de vida não passava dos 56 anos; mais de um terço da população não tinha água potável e 60% não tinham saneamento básico. No ranking de desenvolvimento humano da ONU, o país estava no 149.º lugar (em 188), atrás de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe.

Em Angola, a malária, a febre-amarela e a cólera eram tão endémicas quanto a corrupção. Não havia caixões suficientes, os corpos eram lavados na rua junto do lixo hospitalar e outros resíduos, vendia-se whisky para se desinfetarem as mãos, aos familiares era pedido que fossem à “candonga” comprar medicamentos, luvas, espátulas, compressas.

Se os dados não bastam, há as imagens. Nos últimos dois anos do mandato de José Eduardo dos Santos, Portugal horrorizou-se com as notícias do desespero nos hospitais sem meios para responder aos doentes, com cadáveres deitados ao lado dos ainda vivos. Em Angola, a malária, a febre-amarela e a cólera eram tão endémicas quanto a corrupção. Não havia caixões suficientes; os corpos eram lavados na rua junto do lixo hospitalar e outros resíduos; vendia-se whisky para se desinfetarem as mãos; aos familiares era pedido que fossem à “candonga” comprar medicamentos, luvas, espátulas, compressas.

Durante a epidemia de cólera, Rafael Marques assinou uma impressionante reportagem onde registou a saída de 235 corpos em cinco horas de uma morgue de um hospital da capital. Agora, resume: “Estão a morrer mais pessoas hoje em Angola, pelo menos em Luanda, do que nos últimos anos da guerra”.

Angola podia na altura ter um dos maiores consumos de champanhe per capita, como contabilizou uma reportagem da SIC, e os angolanos podiam comprar 16% dos artigos de luxo vendidos em Portugal no mandato de JES, mas a maioria da população fazia apenas uma refeição por dia, muitas vezes só de arroz ou mandioca, diz ao Observador uma fonte da elite angolana. Quase um terço das crianças nunca tinha ido à escola, e metade não acabava o ensino primário, atirando Angola para o fim da África subsariana e das antigas colónias portuguesas.

No entanto, Zédu não foi o Presidente de um país pobre, pelo menos até 2014. Números que ele conhece melhor do que ninguém: o território era uma potência do petróleo (que em 13 anos rendeu 500 mil milhões de dólares), sendo o segundo país exportador da África subsariana, e de diamantes (o segundo maior exportador do mundo) e fazia parte do terço de países que mais cresceram entre 2000 e 2011.

Um relatório de 2013 do Africa Progress Panel, dirigido por Kofi Annan, ex-secretário geral da ONU, dava Angola como “um dos exemplos mais acabados” de uma situação em que as empresas do Estado se escondem num sistema financeiro que não cumpre regras mínimas de transparência e favorece figuras públicas ou políticas. O documento afirmava que era o país que mostrava “da forma mais poderosa a divergência entre riqueza de recursos e bem-estar social”.

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