Quase nove meses depois dos confrontos em Cafunfo que fizeram vários mortos na vila mineira de Angola, o ativista e jornalista Rafael Marques lança um livro em que explica como a crença na magia contribuiu para a violência dos acontecimentos
Rafael Marques de Morais, autor do site Maka Angola e com diversos livros publicados sobre a situação nas províncias das Lundas, passou mais de 40 dias no terreno e entrevistou mais de uma centena de pessoas para esclarecer os incidentes de 30 de janeiro de 2021, quando várias pessoas perderam a vida em confrontos com a polícia durante uma manifestação organizada pelo Movimento do Protetorado Português Lunda Tchokwe (MPPLT).
Muitos dos participantes da marcha acreditavam ser imunes aos ferimentos e à morte, devido aos rituais mágicos realizados pelos organizadores e chefes do movimento antes da manifestação.
Sem se pronunciar sobre os vários relatos sobre os acontecimentos, também díspares no que diz respeito à contagem das vítimas — as autoridades oficiais dizem que se tratou de um ataque à esquadra local e contam seis mortes, membros da sociedade civil consideraram que se tratou de uma manifestação pacífica e apontaram mais de 20 mortos, – Rafael Marques de Morais avançou para a sua própria investigação.
Concluiu que morreram durante os confrontos 13 pessoas, outras 16 ficaram feridas (incluindo uma criança de nove anos) e seis estão desaparecidas, mas admite que os números não são definitivos, pois tratou-se de “uma situação muito confusa”.
“Eu passei meses a investigar, não sei como no dia seguinte as pessoas tinham números conclusivos”, declarou em entrevista à Lusa.
No livro “Miséria & Magia”, que vai ser lançado no dia 18 de outubro em Cafunfo (Lunda Norte) expõe a forma como o contexto de pobreza nesta província rica em diamantes, em que nove em cada dez pessoas são pobres, e a ausência do Estado contribuíram para a radicalização dos manifestantes que, a 30 de janeiro, avançaram contra a polícia convictos de que a magia os protegeria das balas.
Através da recolha de testemunhos, Rafael Marques estabelece uma cronologia detalhada e descreve como os rituais de magia e “preparações botânicas” revelam “uma prática de mobilização e controlo de massas, de incitação à violência e de tomada de poder político através de uma justificação tradicional”
O investigador e ativista concluiu assim que “os rituais de magia ocuparam um lugar instrumental na mobilização de massas, sobretudo de camponeses, como um comando do poder tradicional contra a ordem político-constitucional”.
“Os participantes sentiam-se com extraordinários poderes para confrontar, com violência, as forças de defesa e segurança”, escreve Rafael Marques, acrescentando que com estes rituais, os chefes do MPPLT consolidaram o seu poder junto das massas, em Cafunfo.
“A manifestação não foi pacífica”, disse à Lusa Rafael Marques de Morais, realçando que a crença na magia levou a que houvesse grande propensão para a violência por parte dos manifestantes.
Durante vários dias, os manifestantes que estavam também convencidos de que o mundo assistiria em direto à sua marcha, via satélite, procederam a intensos rituais de magia para se “blindarem”.
“Muitos acreditaram nisso, iam empolgados. Com a magia não podiam comer, tinham de observar abstinência sexual e uma série de rituais. Obviamente que muitos deles foram marchar com fome e passaram a madrugada toda em rodas de dança. Já se vê o estado de espírito em que se encontravam quando houve toda aquela confrontação e quando começaram os tiros. A ideia é que não se pode recuar, não se pode voltar atrás porque a magia fica sem efeito, tem de se avançar contra as balas”, descreve o jornalista e ativista.
Durante a noite, os manifestantes entoaram cânticos mágicos, mas também orações cristãs, e muitos pernoitaram nas imediações da esquadra de polícia sem serem detetados.
Pelas 04:30 da manhã, recebem a informação de que o satélite já está a filmar. Empunhando paus, fisgas, arcos e flechas, catanas e outros objetos cortantes avançaram contra a esquadra.
O inspetor-chefe Alfredo Hebo “23”, da Polícia de Intervenção Rápida (PIR) é o primeiro a cair. Esfaqueado nas costas e nas nádegas e agredido à catanada na cabeça é dado como morto e deixado no chão.
Segue-se a confusão. A polícia tenta inicialmente dispersar a multidão com gás lacrimogéneo e balas de borracha, sem sucesso. Sucede-se um tiroteio e a morte do primeiro manifestante, Borges Mauanda, que terá sido atingido com um tiro na nuca.
Os confrontos continuam noutras barreiras das forças de segurança com agentes e manifestantes a usarem magia contra magia. Alguns dizem ter voado do local dos tiros e ter sobrevivido graças à “botânica”.
No final de algumas horas, treze pessoas estavam mortas e muitas outras, feridas, fogem para as matas para encontrar refúgio.
No livro, Rafael Marques enuncia os fatores que levaram a este desfecho: “Ignorância, miséria, negligência e incompetência política são a argamassa para a radicalização sangrenta a que se assistiu em Cafunfo, aproveitada por política e intransigência, cujos resultados só podem ser funestos”.
Deixa também um conjunto de recomendações que passam, sobretudo, por intervenções que favoreça o crescimento económico autossustentado, a educação e a saúde com envolvimento do Estado, sociedades mineiras e comunidades locais.