spot_imgspot_imgspot_imgspot_img

Revisão da CRA: “Por uma Revisão Constitucional dos Angolanos” – Rui Verde

Uma revisão constitucional é um acto fundamentalmente político. Logo, a sua discussão não devia estar restringida aos juristas, devia ser alargada a todos os cidadãos interessados na boa governação de Angola. Os juristas serão apenas os alfaiates que hão-de produzir o novo fato constitucional, não os monopolistas da discussão constitucional, que se quer aberta e participada.

É nesse sentido político que se deve interpretar a iniciativa do presidente da República de abrir um processo de revisão constitucional, nos termos dos artigos 233.º e seguintes da Constituição da República de Angola (CRA). João Lourenço, depois de semanas de pressão, retomou a iniciativa política, marcou a agenda e tenta descomprimir a situação.

Aliás, já era tempo de a Constituição ser revista. A mais antiga Constituição da modernidade, a dos Estados Unidos da América, foi aprovada em 1787 e teve a sua primeira revisão (amendment) em 1791. A Constituição portuguesa entrou em vigor em 1976 e foi alvo de uma profunda revisão em 1982. A Constituição francesa de 1958 viu a sua primeira revisão em 1962. Portanto, a CRA, em termos comparados, já carecia de uma revisão há bastante tempo.

Não conhecendo o texto com a proposta de revisão constitucional que foi entregue na Assembleia Nacional, os elementos disponíveis para aferir esta iniciativa encontram-se nas palavras proferidas pelo presidente da República e na conferência de imprensa que os ministros da Casa Civil, da Administração do Território e da Justiça concederam oportunamente. A partir dessas várias intervenções, fica-se com uma ideia geral do pretendido, embora não com o conhecimento necessário dos detalhes. Por isso, a análise que se segue estará sempre incompleta, mas é a possível neste momento.

A primeira impressão que esta revisão constitucional sugere é, como aliás foi afirmado pelos responsáveis políticos, que se trata de uma mera afinação e não de uma revisão de fundo. Acaba por ser mais uma revisão técnica do que uma revisão cidadã e, contrariando o que afirmámos no primeiro parágrafo sobre a natureza da revisão constitucional, começa por ser uma revisão de juristas. Contudo, mesmo assim, com este escopo limitado, vai abrir uma discussão que certamente extravasará o tecnicismo. Possivelmente, a revisão será importante, não pelo que mudará, mas pela discussão que accionará.

Em termos concretos, escolhemos algumas das propostas avançadas pelo presidente da República e seus ministros para aqui discutir e tentar perceber.

Aquela que nos parece a proposta mais importante apareceu algo escondida na exposição do ministro da Justiça e refere-se à possibilidade de confisco de propriedades em caso de ofensa grave às leis económicas do Estado. Esta regra abre a porta para se criar legislação adequada à recuperação de activos, que neste momento vive uma certa anarquia e vazio legal, não se sabendo bem a que título é que o Serviço Nacional de Recuperação de Activos procede à recuperação de bens. Se a introdução desta regra se afigura positiva, acaba por levantar uma dúvida maior. Tendo sido o combate à corrupção uma das bandeiras, senão a principal bandeira da governação de João Lourenço, não se vêem outras medidas de revisão constitucional neste âmbito, como a permissão para estabelecer órgãos próprios, designadamente tribunais, para o combate à corrupção ou o estabelecimento expresso da admissibilidade do crime de enriquecimento ilícito ou da colaboração premiada. Não teria surpreendido a introdução de um capítulo constitucional dedicado ao combate à corrupção, atendendo ao papel central que este assume na vida política e económica angolana. Em suma, o combate à corrupção teria merecido um papel mais central nesta revisão constitucional.

Uma ideia deslocada é a da introdução do governo de gestão no mandato presidencial. Afirmou o ministro Adão de Almeida: “Regra geral, no período fim de mandato de um presidente da República, há preocupação de que não sejam tomadas medidas susceptíveis de comprometer a longo-médio prazo a governação subsequente.” Acrescentando depois que, uma vez que “a partir do momento do início da campanha eleitoral um presidente da República em funções “não pode tomar decisões de fundo, quando começar a campanha eleitoral o Governo entra em modo gestão corrente, porque está à espreita um novo presidente, um novo Governo”.

Percebe-se a razão histórica da introdução desta regra: a ideia é que a tentativa de condicionamento que José Eduardo dos Santos tentou fazer do mandato de João Lourenço, através de uma série de decisões apressadas nos últimos dias da sua governação, não se repita.

Contudo, estamos perante uma verdadeira confusão conceptual: a figura do governo de gestão apenas se verifica em situações de provisoriedade governamental, ou antes, de um governo ter o seu programa aprovado pelo Parlamento (quando responde politicamente perante o poder legislativo, o que não é o caso angolano), ou depois de o governo se ter demitido e até ser nomeado outro governo (cfr. artigo 186.º, n.º 5 da Constituição portuguesa). Isto quer dizer que a figura do governo de gestão apenas se aplica a situações de legitimidade imperfeita do governo, quando este é provisório por alguma razão.

Ora, o mandato do presidente da República não é provisório, mas sim totalmente pleno entre a eleição e a tomada de posse do sucessor (diferente será o caso de demissão). Não faz, então, qualquer sentido introduzir limitações na plenitude do mandato presidencial. Isto parece apenas um disparate.

O comunicado sobre a revisão constitucional também se referiu aos impedimentos e inelegibilidades do presidente da República, mas em termos poucos esclarecedores, pelo que, até se conhecer o texto propriamente dito, não há comentários a fazer.

A revisão constitucional irá ainda aumentar o número de membros designados pelo presidente da República para o Conselho da República, um passo positivo para agregar mais contributos da sociedade civil, e elimina o gradualismo em relação às autarquias, permitindo que o legislador ordinário disponha livremente sobre a cronologia da criação das autarquias: um passo lógico, onze anos depois da aprovação da Constituição.

Aparentemente, são reforçados os poderes simbólicos e representativos do Tribunal Supremo. Neste âmbito, é necessária uma profunda reflexão que se deixará para outro texto.

Este é apenas um primeiro comentário, ainda muito genérico, sobre as intenções de revisão constitucional apresentadas pelo governo.

Já era tempo de se proceder a uma revisão constitucional em Angola. Este passo representa um movimento inteligente de descompressão e antecipação política do presidente da República. No entanto, em termos de conteúdo, é demasiado tecnicista, assumindo a forma de uma revisão de juristas, quando devia ser uma revisão dos cidadãos. Aguardemos.

Rui Verde

spot_imgspot_imgspot_imgspot_img
spot_imgspot_imgspot_imgspot_img

Destaque

Artigos relacionados