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Sangue, suor e lágrimas no funeral de Joelson Caio Manuel Mendes “Nagrelha”, o “Estado-maior” do kuduro angolano

O Funeral do kudurista angolano “Nagrelha” ficou hoje marcado por tumultos e violência à entrada do cemitério de Santa Ana, em Luanda, onde a enorme multidão concentrada no local foi dispersa com gás lacrimogéneo, provocando ferimentos em várias pessoas.

Ainda sem dados oficiais da polícia, que mobilizou 800 agentes para acompanhar o cortejo e funeral, a Lusa testemunhou no local a caótica debandada, com pessoas desmaiadas e feridas, enquanto muitos outros perderam chinelos e sapatos quando tentavam fugir ao gás.

A manhã começou cedo, no Estádio da Cidadela onde se organizaram as cerimónias fúnebres de homenagem a Gelson Caio Mendes “Nagrelha”, estrela maior do kuduro e do bairro Sambizanga, ídolo inspirador de muitos jovens angolanos que admiram a fama e o sucesso conquistado por um filho do “gueto”.

Mas a grande mobilização a que se assistia já no Sambizanga, onde o “Estado-maior do kuduro” reuniu as tropas na noite anterior, fazia adivinhar que o dia a seguir seria complicado, o que levou as autoridades a fechar a Avenida Deolinda Rodrigues, um dos principais acessos à cidade, para libertar as imediações do cemitério que ficou reservado apenas para o funeral de “Nagrelha”.

Pelas 09:30, uma multidão de angolanos, sobretudo jovens, avançavam já em direção ao cemitério, num cortejo colorido e agressivo, onde se entoavam cânticos e palavras de ordem, acompanhados dos disparos dos “rateres” dos milhares de motoqueiros que acompanhavam o desfile.

Todos queriam despedir-se de “Naná”, o nome carinhoso como era conhecido “Nagrelha”, uns imitando o tom descolorado do cabelo, outros envergando uniformes militares honrando o seu “Estado-maior” e até houve quem passeasse nu pela multidão.

“Tudo pelo kuduro”, como dizem.

A morte chegou cedo para o artista de 36 anos que regressou a Luanda há poucos meses, depois de uma temporada para tratamento em Portugal, tendo ficado internado no antigo sanatório de Luanda, atual complexo hospitalar Cardeal Alexandre do Nascimento devido a um cancro no pulmão.

Ainda no início deste ano, o kudurista, que participava regularmente nos comícios do MPLA organizados pelo anterior Presidente da República, José Eduardo dos Santos, falecido também este ano, dava uma polémica entrevista ao artista Flysquad, em que se zangou com o entrevistador quando este o questionou sobre “Zedu”, quem dizia ser o “pai” que o alimentou.

Partiram com poucos meses de diferença, mas entre o pesar institucional do funeral de Estado de “Zedu” e a comoção da despedida do “Estado-maior” do kuduro, fez-se um mundo de distância.

E os jovens, provenientes de todos os bairros periféricos de Luanda, a quem a colagem partidária de “Nagrelha” não incomodou, mostraram que o mundo deles é o maior, homenageando o artista com um cortejo fúnebre jamais visto em Luanda, segundo várias pessoas ouvidas pela Lusa.

Ao desfilarem, muitos choravam o “filho do Zedu”, enquanto outros proclamavam “‘Nagrelha’ Presidente. João Lourenço, deputado”, numa crítica implícita ao atual chefe de Estado.

Tudo correu bem, até toda a energia explosiva se transformar em caos junto ao cemitério onde a Lusa testemunhou o pânico da multidão que tenteava fugir às granadas de gás lacrimogéneo.

Algumas pessoas relataram ter visto dois polícias mortos e são visíveis lojas e viaturas vandalizadas em vídeos que circulam nas redes sociais. A Lusa não conseguiu comprovar estas informações até ao momento, mas presenciou um motociclo da polícia queimado, bem como pneus incendiados.

A Lusa tentou entrevistar alguns jovens que se refugiram numa bomba de gasolina nas proximidades do cemitério, entre as quais uma pessoa que disse ter visto uma mulher pisada pela turba, mas a entrevista foi interrompida quando as pessoas foram obrigadas a dispersar pela polícia de intervenção que irrompeu no local.

Obama Lendário, do bairro Cacuaco, foi um dos que ficou, mostrando-se “muito sentido” com a morte do “Estado-maior do kuduro” e com o comportamento da população.

“Atenção população, o “Nagrelha” não foi de confusão, nós somos do kuduro, o kuduro não é estrago. Pessoal, agradecia que celebrassem o dia de 22 de novembro de 2022, vamos respeitar a morte do nosso irmão. Como kudurista, apelo a outros colegas, fãs, sambizanguenses, cazenguenses, vianenses, (não) vamos nos comportar mal na morte do nosso irmão”, exortou, lamentando não ter conseguido chegar ao cemitério por causa da “confusão”.

Chocarang, artista de música eletrónica, que conviveu com “Nagrelha”, elogiou o músico à saída da Cidadela pela diferença que fez na música e pela maneira como se apresentava e cantava e “isso fez com que se tornasse o líder do kuduro”, disse à Lusa.

Era “uma pessoa super fixe do bairro que lidava com todo o mundo”, descreveu, elogiando a “simplicidade” do artista que se tornou famoso, mas não esqueceu as origens.

Vindo da Estalagem, Sambapito do Charme quis também, junto dos seus amigos, celebrar um kudurista que “deu bastante pelo estilo”.

“‘Nagrelha’ dos Lambas, nosso irmão, por isso estamos aqui para dar aquela garra máxima pelo Estado-maior do kuduro. O que o ‘Nagrelha’ fez, não tem como nós ficarmos em casa”, sublinhou, contando que veio a pé para se despedir deste pai, “amigo e carismático”.

“Estamos aqui para fazer kuiar (agradar) altamente (…) o presidente do estilo kuduro”, reforçou.

Lourenço Inácio, mais conhecido por Sete Cores, ostenta um “look” que lhe dá nome e conta que foi por causa do “irmão” “Nagrelha” que se tornou também músico, saudando o incentivo que este deu a muitos jovens para deixarem a delinquência.

“Quero também dar o meu contributo, sinto muito essa perda do kuduro, do nosso “Nagrelha”, que a sua alma descanse em paz. Angola é o mundo, mas isto está nos a deixar abalados, tantos tiroteios, no meio do gás”, afirmou à Lusa, enquanto recomeçavam os disparos de gás lacrimogéneo.

“Nosso mentor, nosso patrão, nosso comandante chefe, nosso lendário do kuduro”, gritaram os jovens, antes de escaparem de novo pelas ruas da capital angolana, hoje invadidas pela emoção incontrolável dos que choram por Naná, aquele que dizia que “a morte e o sono são filhos do mesmo pai, mas um não sabe brincar”.

 

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