Está ainda fresca na memória a afirmação colorida do presidente João Lourenço quando empossou os novos administradores da Sonangol após a exoneração de Isabel dos Santos, segundo a qual estes deveriam cuidar bem da petrolífera angolana, por ser a “galinha dos ovos de ouro” de Angola.
A realidade é que nessa altura os ovos da galinha já seriam de prata e agora parecem mais de barro do que outra coisa. É tempo de olhar para a Sonangol de outra forma e de tomar medidas corajosas para evitar que a empresa se afunde de vez e arraste consigo a economia angolana.
É importante analisar, ainda que sumariamente, o Relatório e Contas da Sonangol de 2020, que recentemente foi colocado à disposição do público. Comecemos por um aplauso. Para nós que nestas colunas já acompanhamos estes relatórios há cerca de dez anos, trata-se, talvez, da primeira vez em que a Sonangol apresenta um documento claro, sem esconderijos retóricos e com números perceptíveis. Há claramente um esforço de transparência no Relatório e tal deve ser sublinhado.
Obviamente, a transparência implica que a situação degradada da empresa se torne notória para todos.
Como já é conhecido, o resultado líquido da empresa foi negativo em USD 3 mil milhões de dólares (2.383.978.741 milhares de kwanzas). Escusado será dizer que é um prejuízo brutal da empresa propulsora da economia angolana. Mas o pior destes números são os resultados operacionais, que são aqueles que permitem aferir acerca do desempenho da empresa, sendo possível ver se uma companhia é viável mesmo que tenha apresentado um prejuízo líquido. Ora, acontece que os resultados operacionais são também negativos, em cerca de 700 milhões de dólares (436.964.707 milhares de kwanzas). Portanto, temos resultados líquidos e resultados operacionais extremamente negativos.
No entanto, a administração da empresa considera, segundo afirma o relatório do auditor independente Paulo Rui Inocêncio Ascenção, da KPMG-Angola, que a situação de liquidez do grupo e os níveis de capital são suficientes para prosseguir a actividade da Sonangol. Na verdade, se olharmos para outro indicador, o EBITDA de 2020 (correspondente ao resultado operacional deduzido das amortizações do exercício) foi de USD 2 mil milhões positivos (1 172 989 milhões kwanzas). No entanto, mesmo este número mais animador representou uma redução de 33% face ao ano de 2019. Os capitais próprios da empresa são positivos em USD 9 mil milhões.
Esta chuva de números permite duas conclusões acerca da Sonangol:
- A empresa não está falida e tem capacidade financeira para a continuidade das operações,
- Mas está numa situação de declínio acentuado e, se não forem tomadas medidas, corre o risco de, no médio prazo, desaparecer.
Certamente, hoje já não é uma galinha de ovos de ouro. Basta notar que o seu prejuízo em 2020 foi equivalente a quase 5% do PIB angolano de 2020, medido em dólares americanos.
O Conselho de Administração considera que este resultado negativo da Sonangol em 2020 é fruto directo da redução drástica das receitas provenientes das vendas de petróleo bruto e do elevado grau de imparidades registadas, devido à redução do preço do barril de petróleo, que implicou também uma redução das reservas provadas da empresa, tendo em conta o ano anormal vivido, por causa da pandemia da COVID-19 (p. 18 do Relatório de Contas de 2020). E explica que em termos analíticos, enquanto o Brent registou um preço de USD/Bbl 63,51 em Janeiro e 49,86 em Dezembro de 2020, o seu referencial médio foi de USD/Bbl 40,71, tendo atingido o seu nível mais baixo no mês de Abril, quando o barril de petróleo de referência Brent chegou a ser cotado a USD 18,26 (p.44 do Relatório e Contas de 2020).
É evidente que a quebra do preço do barril de petróleo provoca um embate nos números da empresa. Aliás, continua a ter uma força mortífera na economia angolana, como ainda recentemente reconheceu a ministra das Finanças Vera Daves: “Se o sector petrolífero se movimentar contra nós, toda a economia entra em stress.” Contudo, o problema da Sonangol não está apenas aqui.
Os prejuízos da Sonangol têm, também, causas profundas e estruturais. A primeira é a falta de investimento. Basta olhar para outro número apresentado no Relatório. Segundo aí se explica, o Programa de Investimento para o ano 2020, orçado em USD 2.039.833.307,00 viu registar um grau de execução global de cerca de 31% (p. 23). Isto é grave. Mesmo em relação ao investimento previsto, nem um terço foi realizado. Deve ser colocada a questão: o investimento da Sonangol foi tão diminuto devido a falta de dinheiro?, a incapacidade de gestão? Ou houve algum outro factor desconhecido? Não havendo investimento, dificilmente haverá sustentabilidade da empresa.
Um outro aspecto que também merece um estudo mais aprofundado é o do destino do petróleo. O continente asiático é o principal destino para o petróleo bruto angolano, com um peso global superior a 87%, tendo a China representado um peso de cerca de 66%, seguida da Índia com 12,1% e da Tailândia e Taiwan com um peso combinado de mais de 21%.
Vê-se o peso enorme que as compras da China têm na economia angolana. Há que tornar transparentes os negócios do petróleo com a China, designadamente os preços de compra que estão a ser praticados. Lembremo-nos de que há uns anos havia um esquema montado através da China Sonangol (detida, aparentemente, por famosos oligarcas angolanos e Sam Pa) segundo o qual a Sonangol vendia o petróleo a um peço fixo baixo à China Sonangol, que por sua vez o revendia à China a um preço de mercado mais alto. A questão que tem de se colocar é se esta fixação de preços com a China, de modo a favorecer intermediários, ou a conceder algum benefício à própria China, ainda se mantém. Tem de existir uma renovada transparência em relação à contratação da compra e venda de petróleo para a Ásia, em especial para a China.
Por outro lado, ao nível do lançamento da Sonangol na área das energias renováveis, o que é de sublinhar e temos defendido, a companhia assinou com a ENI (empresa italiana) um Memorando de Entendimento, e constituiu no Reino Unido uma sociedade denominada Solenova Ltd, empresa detida conjuntamente pela Sonangol e a ENI, com 50% do capital social cada uma, cuja missão consiste em desenvolver, operar e gerir projectos de energias renováveis em Angola e produzir energia eléctrica.
Este acordo com a ENI levanta duas dúvidas estratégicas. A primeira liga-se ao facto de não ser mencionado qualquer acordo com a Galp portuguesa. É sabido que esta empresa portuguesa, onde a Sonangol detém uma avultada participação indirecta, está a prosseguir aceleradamente uma estratégia de diversificação energética rumo às renováveis. Ora, pergunta-se, por que razão a Sonangol não aproveita as sinergias estratégicas com a Galp, onde é sócia? É um mistério. Em segundo lugar, é condenável que se continuem a constituir empresas em Londres (ou outros países estrangeiros). Já se viu as trapalhadas jurídicas que estes esquemas globais criam para o Estado angolano e para a linearidade dos procedimentos. Contudo, insiste-se em criar estruturas fora da alçada da lei e do controlo angolanos. Só pode dar mau resultado.
Em resumo, há graves problemas de investimento, de contratação e de transparência na Sonangol que dificultam a sua recuperação e que têm de ser enfrentados.
No passado defendemos, e continuamos a defender, que era fundamental a privatização de 30% da empresa, para fazer entrar dinheiro fresco, ideias arejadas e perspectivas diferentes. O certo é que todos os motivos têm servido para atrasar essa privatização. Não há justificação para mais adiamentos. A COVID-19 não é desculpa. Refira-se que, em 2020, o volume total de OPV (Ofertas Públicas de Venda) nos Estados Unidos foi maior do que em qualquer ano desde 2000 e as receitas brutas foram quase o dobro de 2019. As receitas brutas em 2020 alcançaram 76,3 mil milhões de dólares americanos, ante 45,3 mil milhões de dólares no ano anterior. Consequentemente, não se pode dizer que o mercado internacional de capitais está parado. Pelo contrário. Quem parece estar parado são os gestores da Sonangol. Outra alternativa para o futuro da Sonangol é a reengenharia total da companhia, tornando-a na Enangol (Energias de Angola), mas isso será tema para outro texto.