Esta pergunta é fundamental no actual ordenamento jurídico angolano porque, cada vez, mais as leis vigentes no país parecem ser letras mortas ou matadas. Nem vale a pena levantar a questão ética, cuja resposta é óbvia.
A Lei Orgânica e do Processo do Tribunal de Contas (Lei nº 13/10, de 9 de Julho, actualizada pela Lei 19/19, de 14 de Agosto), que rege o funcionamento deste tribunal, determina no seu primeiro artigo que “o Tribunal de Contas é o órgão supremo de fiscalização da legalidade das finanças públicas e de julgamento das contas que a lei sujeite à sua jurisdição”.
Mas, a realidade, como demonstraremos em seguida, os factos indiciam que esta augusta instituição se tornou uma agência de viagens ao serviço dos filhos da sua presidente, Exalgina Gambôa, e das suas excursões a Lisboa. Depois de tantas denúncias, compreende-se assim melhor que a presidente não se demita: para além da impunidade que as ligações à mais alta magistratura do poder lhe conferem, Gambôa certamente não quererá abdicar da sua agência de viagens privada.
Como principal bandeira do seu governo, “o presidente João Lourenço tentou institucionalizar a luta contra a corrupção, o fenómeno mais destruidor da sociedade angolana, anunciando que poria um fim à corrupção institucionalizada do seu predecessor. Lourenço colocou o poder judicial na linha da frente do seu mandato. Mas fê-lo sem nunca ter estabelecido uma visão sobre o que seria o novo paradigma da justiça em Angola, e sem sequer reformar a justiça”. Num erro trágico, quis combater a corrupção com os corruptos. E contou apenas com as recomendações do seu círculo restrito de poder, onde a confiança política parece derivar das relações familiares e de amizade pessoal.
Apreciemos alguns dos resultados dessa natureza do poder das amizades.
Em 2018, o presidente João Lourenço nomeou a sua comadre, a economista Exalgina Renée Olavo Gambôa, para presidente do Tribunal de Contas. Conhecida pela sua extraordinária arrogância, a economista logo tratou de transformar a instituição em seu cofre privado. O Maka Angola já denunciou, em primeira mão, como Exalgina Gambôa gastou cerca de quatro milhões de dólares do tribunal para comprar mobílias de luxo que colocou na sua casa no Condomínio Malunga, no Talatona, Luanda. Uma segunda casa, que lhe foi dada de presente pelo Estado, custou ao Ministério das Finanças 3,5 milhões de dólares. A primeira custou mais.
Perante estes factos, competia ao presidente da República, que detém o magistério de influência e é o garante último das instituições, solicitar à Procuradoria-Geral da República que averiguasse o caso. Na verdade, o Maka Angola endereçou, a 14 de Outubro de 2022, a denúncia ao procurador-geral da República, o ora demissionário general Hélder Pitta Groz, para se procedesse à fiscalização e responsabilização dos actos da presidente do Tribunal de Contas. Até à data, não obteve resposta.
Já a Assembleia Nacional, o órgão de soberania encarregado da fiscalização dos actos do Tribunal de Contas, respondeu ao nosso pedido de fiscalização e responsabilização dos actos de Exalgina Gambôa a 7 de Novembro passado. Através da missiva N/Refª 0171/00/A-05/GPAN/2022, a presidente da Assembleia Nacional, Carolina Cerqueira, comunicou-nos que “tomou boa nota sobre o teor” da nossa denúncia e desencadeou os procedimentos legais para investigar o caso.
A agência de viagens
A inacção institucional permite que Exalgina Gambôa, com toda a impunidade, continue a usar o Tribunal de Contas como sua propriedade privada. O Maka Angola mostra, com base na nova investigação em curso, como essa instituição se transformou na agência de viagens gratuita para o constante vaivém, entre Luanda e Lisboa, dos três filhos adultos da presidente do Tribunal de Contas.
O valor total dos bilhetes de passagem em classe executiva, pagos pelo cofre privativo do tribunal, para as viagens de Hailé, Eliana e Edivaldo Cruz e netos ainda está a ser contabilizado. Isso não impede de fazer desde já um cálculo simples: um bilhete em classe executiva de Luanda a Lisboa custa, em média, cinco mil dólares. Bem se pode adiantar que é uma verdadeira sangria de dinheiros públicos.
Nenhum dos três filhos de Exalgina Gambôa trabalha no Tribunal de Contas. Actualmente, o primogénito, Hailé da Cruz, é membro do Conselho de Administração da UNITEL Money, indicado pela Sonangol. Antes, foi membro do Conselho de Administração do Banco Yetu, onde está domiciliada a conta do cofre privativo do Tribunal de Contas, que tem pago várias despesas indiciadoras de peculato e corrupção por parte de Exalgina Gambôa.
Por sua vez, a arquitecta Eliana da Cruz é coordenadora de projectos na empresa Imogestin, S.A., cujo presidente do Conselho de Administração, há 22 anos, é o seu pai, Rui Cruz.
Já Edivaldo Cruz assume, na sua página do LinkedIn, ser “empreendedor, investidor, consultor, blogger, palestrante e pai”, depois de ter passado pelo Standard Bank Angola. Então, como é que um empreendedor e investidor sério precisa da mãe para lhe comprar bilhetes de passagem em classe executiva para as suas excursões a Lisboa?
Para as férias de Natal, este órgão de fiscalização das contas do Estado pagou o bilhete de passagem, em classe executiva Luanda-Lisboa, de Edivaldo Tito Vicente da Cruz, com saída a 19 de Dezembro de 2022 e regresso a 13 de Janeiro do corrente ano.
Por sua vez, Eliana Cruz tem o bilhete de passagem, em classe executiva, pago para sair de Lisboa rumo a Luanda em 23 de Março de 2023, com regresso previsto à capital portuguesa no dia 8 de Abril deste ano.
Regra geral, as viagens dos filhos de Exalgina Gambôa são acompanhadas de pedidos à directora-geral do Protocolo de Estado do Ministério das Relações Exteriores para que a sua prole utilize a sala protocolar do aeroporto. São demonstrativos o ofício nº 154/TC/2022 de 2 de Maio de 2022, para a viagem a Lisboa, no dia seguinte, de Edivaldo Cruz; e o nº 252/TC/2022 de 21 de Julho de 2022, para a viagem a Lisboa, dois dias depois, de Hailé Cruz. O teor dos pedidos é sempre o mesmo, mudando apenas os nomes dos filhos e as datas: “A Direcção dos Serviços Administrativos vem pelo presente solicitar autorização para a utilização da sala de Protocolo do Estado do Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro, no acto de viagem de entidades adstritas à veneranda juíza conselheira presidente, Dra. Exalgina Gambôa: Hailé Cruz – filho.”
Essa farra dos bilhetes de passagem para os filhos remonta a 2019. Por exemplo, para as férias de Natal de 2019, a Direcção dos Serviços administrativos do Tribunal de Contas solicitou a emissão de quatro bilhetes de passagem no trajecto Luanda-Lisboa. Em primeira classe, para a sua presidente, em executiva para a filha desta, Eliana, e os dois bilhetes em económica para os escoltas Januário Chiquito e Manuel de Almeida, que as acompanharam às compras e aos passeios por Lisboa.
Ademais, a 17 de Dezembro de 2019, o mesmo tribunal solicitou mais um bilhete em classe executiva, no valor de cinco mil dólares, para a viagem de Eliana Cruz, com partida de Luanda a 30 de Abril de 2020 e regresso, a partir de Lisboa, a 17 de Maio do mesmo ano.
Lei, qual lei?
Refira-se que as prerrogativas dos juízes do Tribunal de Contas equiparam-se, nos termos do artigo 24.º da lei respectiva, às dos juízes do Tribunal Supremo. Sendo assim, aplica-se-lhes o Estatuto dos Magistrados Judiciais, em cujos artigos 33.º e 34.º não vislumbramos nenhumas regalias para os filhos dos magistrados.
Contudo, a Lei Orgânica do Estatuto Remuneratório das Magistraturas, que se aplica por remissão ao Tribunal de Contas, permite no seu artigo 18.º que os magistrados ou equiparados e os seus cônjuges tenham direito uma vez por ano a uma viagem ao exterior do país na companhia aérea nacional. Bem se vê que esta norma não se aplica ao caso que descrevemos: filhos maiores não são cônjuges. “A lei, ao referir expressamente cônjuges, excluiu de forma notória qualquer outro familiar, caso contrário a fórmula utilizada seria ‘cônjuges e descendentes’ ou algo de semelhante”, nota o jurista Rui Verde.
Além do mais, as viagens repetem-se. Qualquer que seja a elasticidade legal, isto será ilícito.
Os factos descritos compreenderão a prática de crimes de peculato e tráfico de influências, além dos crimes fiscais cometidos quando se recebem rendimentos não declarados. O crime de peculato está previsto no artigo 362.º do Código Penal e acontece quando alguém em funções públicas se apropria ilegitimamente, em virtude do seu cargo, de algo que não lhe pertence. Já o crime de tráfico de influências é previsto e punível pelo artigo 386.º do mesmo Código Penal, e ocorre quando alguém aceita a influência junto de uma entidade pública para obter uma vantagem. O peculato aplicar-se-á às acções da juíza-presidente, enquanto o tráfico de influências se aplicará aos filhos. “Se ambos os comportamentos se tiverem repetido, poderemos estar perante o denominado crime continuado (artigo 29.º do Código Penal), que consiste na repetição do mesmo tipo de crime que fundamentalmente ofenda o mesmo bem jurídico, executado por forma essencialmente homogénea”, nota Rui Verde.
Pelo exposto, talvez João Lourenço devesse adoptar uma atitude radicalmente diferente daquela que apregoou e apregoa em campanha: em vez de investigar e punir estes alegados crimes da sua comadre Gambôa, propor que se altere a lei orgânica do Tribunal de Contas, atribuindo-lhe a função de agência de viagens ao serviço de todos os filhos do poder. Alargue-se o circuito, para que os filhos dos outros chefes também possam beneficiar, ficando em igualdade de circunstâncias com a família da juíza-presidente. Assim, punha-se um fim às queixas de que há um circuito fechado, dentro do qual só os mais próximos do presidente podem continuar a depredar as instituições do Estado, usando-as como comedouros para enriquecimento privado. De facto, a avaliar para a inacção de João Lourenço, dir-se-ia que o presidente desistiu da luta contra a corrupção – se é que alguma vez a levou verdadeiramente a sério.