A defesa de um sistema judicial eficiente e imparcial para Angola tem sido uma das principais bandeiras que temos defendido no Maka Angola. A credibilidade da justiça é condição fundamental para uma luta política funcional e não assente na desordem. A disfuncionalidade da justiça gera uma governação e políticas arbitrárias e perdidas nos labirintos do ruído excessivo. Nestes tempos de embate e recalibragem do sistema político angolano, é imperativo exigir que a justiça funcione e ofereça respostas racionais e fundadas no Direito.
Convém ter presente que tudo passa pela justiça: a luta contra a corrupção, a legalização de partidos ou coligações e, no fim, o resultado das eleições. Não é demais enfatizar o relevo da justiça para a existência de um verdadeiro Estado Democrático de Direito em Angola.
Um dos casos mais marcantes do combate à corrupção é o “caso dos 500 milhões”, que envolve, entre outros, José Filomeno dos Santos (Zenú), filho do antigo presidente da República José Eduardo dos Santos (JES), e Valter Filipe, antigo governador do Banco Nacional de Angola (BNA). São conhecidos os elementos essenciais do processo. Na véspera do final do mandato de JES, em 2017, foi ordenada uma transferência de fundos públicos, totalizando 500 milhões de dólares, por via do BNA, com destino a uma conta privada de um banco em Londres. Esta transferência foi justificada como fazendo parte de um negócio de financiamento da República de Angola no valor de 30 mil milhões de dólares. A questão é que esse financiamento não existia e estava sustentado em documentação falsa.
O processo encontra-se agora em fase de recurso no Tribunal Supremo, e a decisão final tem vindo a ser confrontada com várias peripécias, que demonstram justamente o que não pode acontecer na justiça.
Um dos primeiros aspectos – e essencial – neste caso é a não audição do ex-presidente José Eduardo dos Santos. A defesa dos arguidos assentou na argumentação simples de que se tinham limitado a cumprir ordens do então presidente, que havia determinado e autorizado a consumação da operação subjacente. Ora, mesmo que se considere haver um dever dos arguidos no sentido de não cumprir ordens ilegítimas – dever bem vincado na jurisprudência internacional a partir da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e dos subsequentes julgamentos de Nuremberga, que condenaram os mais relevantes nazis, que se defenderam dizendo que estavam a cumprir ordens –, a verdade é que tem relevância para o caso concreto perceber o papel de JES nesta operação. No mínimo, a intervenção de JES em tribunal poderia levar à atenuação das penas dos arguidos; no máximo, à sua absolvição. Portanto, não é despiciendo ouvir JES: é um imperativo de justiça, pois Valter Filipe e restantes arguidos, sobretudo os funcionários do BNA, não são necessariamente culpados. Dependendo da intervenção de JES, pode-se considerar que não têm culpa, absolvendo-os relativamente aos actos concretos que praticaram. A moderna doutrina penalista adoptou a figura da “obediência indevida desculpante”, que nos diz que age sem culpa o funcionário que cumpre uma ordem sem conhecer que ela conduz à prática de um crime, não sendo isso evidente no quadro das circunstâncias por ele representadas, como já havíamos salientado em Dezembro de 2019.
Recorde-se que JES está, desde o dia 14 de Setembro do corrente ano, a residir no Bairro Miramar, em Luanda, a menos de sete quilómetros do Tribunal Supremo. Não há razões evidentes, assim, para que este tribunal não ouça o que tem a dizer o ex-presidente.
Outro motivo da confusão no Supremo reside no facto de, aparentemente, o acórdão não estar a ser elaborado pelo juiz Miguel Correia, a quem foi atribuído o processo. O juiz conselheiro Miguel Correia estará doente, de tal forma que desde 2019 não julga nenhum dos processos a si distribuídos. De acordo com uma fonte do Tribunal, afirma-se que não é o juiz Miguel Correia quem elabora o acórdão. A confirmar-se esta informação, será um acto absolutamente ilegal e inaceitável, violando um princípio básico do direito processual penal: o princípio do juiz natural. Os objectivos deste princípio são definidos pela doutrina: “Através do princípio do juiz natural ou legal, proíbe-se a escolha arbitrária de um juiz ou tribunal para resolver um processo (caso determinado) ou determinado tipo de crimes, garantindo-se, assim, a imparcialidade e independência dos juízes que têm a competência para apreciar as causas penais, os quais devem ser escolhidos de acordo com critérios objectivos. Este princípio, visa, assim, garantir uma justiça penal independente e imparcial.”
Alegadamente, estas razões terão levado alguns juízes do Tribunal Supremo a não comparecer ao plenário da próxima sexta-feira, apresentando razões de saúde ou razões pessoais e familiares.
É ainda digno de nota, além do mais, que existe neste processo julgado em primeira instância uma larga disparidade da pena aplicada a Valter Filipe (oito anos de prisão) face aos outros arguidos: José Filomeno dos Santos (cinco anos), Jorge Pontes (seis anos) e Manuel Bule (cinco anos). Não se percebe o critério das penas, pois, por alguma razão não exactamente clara, Valter Filipe surge como o principal culpado nesta história, e obviamente não é. Não foi Valter Filipe quem congeminou a operação, nem quem lhe deu o impulso adequado; foi, isso sim, mais um obediente burocrata. Chegou o tempo de levar estes e outros julgamentos a sério, edificando uma justiça que orgulhe todos.