Os velhos hábitos persistem na Procuradoria-Geral da República (PGR). Em alguns casos, parece que há uma força oculta determinada a manter a asneira hiperbólica. É o que se passa actualmente no Tribunal Provincial de Luanda, 6.ª secção da sala dos crimes comuns, processo n.º 906/21-E TPLDA, presidido pela juíza Josina Falcão, uma magistrada com reputação independente e justa, e profundamente conhecedora das normas jurídicas, auxiliada pelos juízes Joaquim Salombongo e Manuela Vatana Soares, que tem como arguidos 30 supostos ex-comandos “Tigres”.
Está presente na memória de todos a absurda acusação feita contra os 15+2 em 2015, em que lhes era imputada a prática de crimes de actos preparatórios para a rebelião e de actos preparatórios de atentado contra o presidente da República. Reuniões para ler e interpretar um livro e discutir a situação política do país foram transformadas em conspirações tenebrosas para derrubar o governo.
No entanto, o embaraço e a derrota pública que este julgamento foi para a PGR e para os órgãos de justiça não impedem que se repita, agora sob a forma de farsa, uma acusação deste tipo contra Pedro Santos Monteiro e 29 pessoas, aparentemente antigos comandos “Tigres” das Forças Armadas Angolanas (FAA).
A acusação apresentada pelo procurador João Pederneira Beça Gaspar imputa aos supostos militares, que ostentavam variados graus de oficialato – dos 30 arguidos, um seria tenente-general, três coronéis, quatro tenentes-coronéis, seis majores, 13 capitães e três tenentes –, a prática dos crimes de associação criminosa e usurpação de funções. Segundo a PGR, este é um grupo de oportunistas que pretendiam ser inseridos na Caixa Social das (FAA), estando simultaneamente a utilizar um terreno em Viana no quilómetro 38, que lhes serviria de base para guardar armas e material militar diverso, além de procederem a treino militar intensivo. De acordo com a acusação, o grupo dos ex-comandos “Tigres” tinha cerca de 1300 efectivos em Luanda.
Embora alguns órgãos de comunicação social anunciassem que este grupo pretendia fazer um golpe de Estado contra João Lourenço, tal não resulta directamente da acusação, que aliás não tem qualquer consistência ou lógica narrativa.
De facto, lendo os dez artigos da acusação nem se percebe como a PGR “salta” dos factos que apresenta para as imputações criminais.
Os três primeiros artigos da acusação descrevem a história geral dos comandos Tigre, forças catanguesas que nos anos 60 colaboraram como forças especiais com o exército português e, a partir de 1977, constituíram um activo importante das então Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA).
O artigo seguinte (4.º) descreve a formação, em 2017, de um grupo de ex-comandos Tigre para obter a inserção daqueles que não tinham sido previamente já integrados na Caixa Social das FAA e outras regalias. Só no artigo 5.º é descrito o grupo dos ex-comandos “Tigres” como uma força militarizada composta por ex-combatentes e seus descendentes, que praticam exercícios militares e querem ser compensados pelo Estado angolano, sob a liderança do arguido número um do processo, Pedro Santos Monteiro. Trata-se de uma alegação conclusiva, não sendo apresentado qualquer facto concreto que justifique estas conclusões. Na verdade, não passa de uma mera afirmação sem fundamento visível.
Adiante, no artigo 6.º descrevem-se os esparsos factos que levaram à prisão e acusação dos aqui julgados, passando-se rapidamente para o artigo 9.º, onde lhes são imputados os crimes mencionados de associação criminosa e usurpação de funções.
O crime de associação criminosa, actualmente previsto e punível pelo artigo 296.º do Código Penal, existe quando alguém participa na constituição de associação, organização ou grupo constituídos por duas ou mais pessoas que, agindo de forma concertada ou estruturada, tiverem por finalidade a prática de crimes.
Ora, basta ler a acusação para se perceber que falta um elemento típico da definição do crime, que é a finalidade da prática de outros crimes. Qual é o crime que os ex-comandos “Tigres” querem cometer concertadamente? Não será certamente a usurpação de funções. A não ser que se queira afirmar que se juntaram todos para se tratarem mutuamente por general, coronel ou capitão; isto não é crime, quando muito será teatro ou opereta. A PGR poderia ter indicado que era uma associação criminosa destinada a defraudar o Estado obtendo benefícios a que não teriam direito (pensões, subsídios, etc.). Mas tal não está expresso na acusação e não compete aos juízes inventar intenções da PGR.
Quanto ao crime de usurpação de funções, este ocorre quando alguém, sem que para tal esteja legalmente autorizado, exerce funções ou pratica actos próprios de funcionário público, de comando militar, de força militarizada ou de ordem pública, arrogando-se falsamente essa qualidade.
Também aqui falta um elemento do crime que é a prática de actos próprios. Uma coisa é dizer-se que é general ou coronel entre grupos de amigos, o que não é crime. O músico Eduardo Paim, por exemplo, é muitas vezes referido pela comunicação social do Estado como sendo o general Kambuengo. O humorista Costa Vilola é bem conhecido como o general Foge a Tempo e até enverga uniforme das FAA em algumas das suas actuações públicas. Nem por isso estão a usurpar funções militares.
Estaríamos perante um crime se, por exemplo, um destes homens entrasse num quartel militar e, não sendo general, invocasse essa patente para obter algum benefício material. Ora, no processo judicial em causa, não se invoca que tal tenha acontecido especificamente.
Há que notar que a acusação não individualiza os crimes, nem estabelece qualquer nexo de causalidade; a sua narrativa não tem lógica, pois não se entende a relação entre querer ser integrado na Caixa Social e preparar uma milícia armada; além de tudo, também não se percebe quem fez o quê.
A fragilidade da acusação foi complementada pela falta de produção de prova em julgamento. A prova produzida na audiência, quer atendendo às afirmações dos arguidos, quer dos declarantes, que não identificamos individualmente por respeito aos seus direitos de personalidade, não permite comprovar a acusação, o que, como se referiu, seria sempre difícil, atendendo à sua falta de consistência.
Na verdade, o quadro que surge da narrativa é que efectivamente existia um grupo de antigos combatentes que se reunia para reivindicar os seus eventuais direitos sociais face ao Estado; nada mais além disso resulta com a força exigida pela prova penal.
Em relação ao ajuntamento verificado no dia em que os arguidos foram presos, parece que se tratou de um encontro para prestar homenagem à mulher de um deles, o general ou comandante Cafunda, que morrera. Portanto, um funeral. E se bem que algumas pessoas estivessem fardadas, tratava-se de um conjunto heterogéneo de homens e mulheres, em que não foi encontrada qualquer arma ou material de guerra. Aliás, foi referido que os arguidos não ofereceram qualquer resistência à detenção, nem sequer esboçaram gestos de ameaça ou resistência. Outros declarantes afirmaram também que, embora tendo visto pessoas no terreno do quilómetro 38, algumas delas aparentemente fardadas, não vislumbraram qualquer armamento ou treinos e manobras militares. Por sua vez, o terreno que supostamente seria a base da associação criminosa não passaria de um descampado sem nada, contendo apenas material de construção e dois buracos: um na entrada, presumivelmente para um tanque de água, outro servindo de casa de banho.
Quer isto dizer que a prova produzida não permite concluir que existisse uma base militar onde milhares (ou centenas) de pessoas se reuniam para se treinar militarmente de forma regular. Menos ainda resulta qualquer intento criminoso. Genericamente, ninguém viu nem assistiu a nada desse género.
Muito dificilmente, atendendo à fragilidade da acusação e da prova produzida, poderão estas pessoas ser condenadas pelos crimes de que vêm acusadas e que as mantêm em prisão preventiva há 14 meses.
Além da enorme debilidade que acompanha muitas das acções da PGR, este processo permite retirar uma outra conclusão sobre o tratamento dado aos veteranos que guerra. Muitos veteranos são tornados marginais ou condenados a viver sub-humanamente. Em 2017, reportámos o drama de alguns guardas presidenciais que tinham sido transformados em homens do lixo sem retribuição. Na altura, contava um deles: “Quando pedimos o nosso reenquadramento social, o chefe de Estado mandou meter-nos no lixo, mesmo depois de todo o sofrimento por que passámos. Aceitámos humildemente e passámos a ser tratados por matumbos.”
A história subjacente a este processo talvez não seja muito diferente. Os comandos Tigre são bem conhecidos na história militar de Angola e, ainda em 2004, a Voz da América noticiava que “cerca de três mil comandos da Republica Democrática do Congo, denominados ‘Tigres’ estão a ser treinados pelas Forças Armadas Angolanas na localidade do Kuango, município de Cafunfo na Lunda-Norte”. A dignidade com que um país trata os seus veteranos de guerra, a par das condições das suas prisões, é um elemento que marca a qualidade de uma sociedade. Como se vê, trata-se de uma área em que Angola tem ainda de fazer uma longa caminhada.