A realidade pré-eleitoral desafia os angolanos a dedicarem um pouco da sua inteligência individual à procura do caminho certo para o bem comum. Ou os angolanos usam solidariamente as suas cabeças para criarem uma sociedade melhor para todos, ou os angolanos e seus governantes continuarão a ser a ruína do país.
Com efeito, é fundamental que as forças estruturadas da sociedade lancem, com bastante antecedência, debates públicos sobre as agendas e propostas eleitorais. Se queremos um país diferente, temos de discutir ideias e não emoções.
Há questões que os cidadãos preocupados com o bem comum devem colocar. Para que serve o poder? Como recordamos os nossos líderes? Quais são os legados de Agostinho Neto e de José Eduardo dos Santos, respectivamente primeiro e segundo presidentes de Angola? Como nos lembraremos de João Lourenço, o terceiro presidente? Que legado nos deixará? Holden Roberto e Jonas Savimbi, os outros dois grandes líderes da independência de Angola, que legados deixaram à pátria? Quem são os heróis nacionais que servem de referência para um cidadão melhor, por uma Angola melhor?
Sem dúvida que os líderes políticos são os principais responsáveis pelo estado actual do país. Quando João Lourenço assumiu o poder, em 2017, milhões de angolanos acreditaram que, finalmente, tinham um presidente à altura para os conduzir à transição bem-sucedida de um regime cleptocrático (de captura do Estado) para a concertação social, rumo à funcionalidade do Estado.
No início do seu mandato, a popularidade de Lourenço alcandorava-o a uma categoria de “salvador”. Depois de 38 anos de Dos Santos, qualquer mudança era uma lufada de ar fresco. Qualquer promessa era mais uma nota de esperança.
Contudo, em fim de mandato, Lourenço enfrenta um grande descontentamento popular. Os paradoxos entre a sua coragem e a sua teimosia levaram-no a navegar de um extremo para o outro em muito pouco tempo. Como explicar esta ambivalência?
Há três elementos que foram negligenciados neste período de transição e que estão na base do estado actual de frustração no país: a liderança política, a visão e os objectivos do poder, e a mentalidade social.
Liderança política
Primeiro: a liderança política tinha de travar o regime predador e lançar os alicerces para a reabilitação de uma sociedade desgovernada. Em Angola, as lideranças conduziram a sociedade pelos caminhos da subserviência, da confusão, da pilhagem dos bens públicos, da exclusão social e da irresponsabilidade para com o Estado, que é de todos. Pior que tudo foi a eleição da mediocridade como fonte de estatuto social e político e, por conseguinte, de orgulho nacional. Aniquilaram-se os talentos, a meritocracia, as competências e o sentimento de patriotismo. Pouco ou nada se fez para que a meritocracia passasse a ser fonte de orgulho nacional.
Com a sua chegada ao poder, Lourenço teve a coragem de afrontar a corrupção institucionalizada e consequente saque do Estado que marcaram o governo do seu antecessor, do qual também fez parte, assim como a primeira-dama. Essa coragem de encetar um combate contra os seus próprios colegas facilitou, de forma extraordinária, a demolição da cultura de medo que imobilizava muitos cidadãos, sobretudo na função pública e no seio do MPLA.
Todavia, Lourenço não concebeu um novo modelo de governo e de gestão da administração pública, nem sequer de fiscalização e supervisão.
A ausência de um novo modelo de governo tem, como consequência, o recurso automático do executivo ao improviso e às velhas e más práticas do regime anterior. Na realidade, os governantes e gestores públicos são praticamente os mesmos, os magistrados também, e os deputados apenas cumprem uma função simbólica.
Este é o primeiro problema que não foi ultrapassado. Não se consegue fazer diferente utilizando os mesmos instrumentos e meios. Num tempo em que as referências religiosas ocupam um amplo espaço público, convém lembrar a parábola do vinho novo em odres velhos. Conta o Evangelho de Mateus que Jesus terá dito “[Não] se põe vinho novo em odres velhos; de outro modo arrebentam os odres, e derrama-se o vinho, e estragam-se os odres” (Mateus 9:14-17). Este foi um erro de João Lourenço. Trouxe novas ideias e novos objectivos, mas, simultaneamente, não se libertou das estruturas do passado, que estão na origem do caos político que o novo presidente herdou. Logo, essas estruturas ou rebentaram ou se tornaram suas inimigas, impedindo a concretização dos objectivos que Lourenço havia traçado.
Vejamos o exemplo do último congresso do MPLA, em Dezembro passado. Como presidente do partido que governa Angola há 46 anos, Lourenço, em vez de reformar essa estrutura e dotá-la de uma estratégia de funcionamento para bem servir o país, apenas a “inflamou”. Criou, provavelmente, o comité central mais numeroso do mundo: 693 membros. O Partido Comunista Chinês, com 95 milhões de militantes, tem apenas 205 membros no seu Comité Central.
João Lourenço devia ter encetado uma reforma da administração pública e da justiça, a par de uma renovação efectiva de quadros, abrindo-se à sociedade.
Visão e poder
Segundo: qual é a visão do presidente sobre Angola e os angolanos? Qual é a sua perspectiva acerca do poder e quais são os seus objectivos perante o poder absoluto que a Constituição lhe confere?
Mesmo que a presidência fosse exercida por um super-homem, a concentração absoluta de poderes constitucionais na figura do presidente, enquanto chefe de Estado e de governo, é, por si só, uma prerrogativa que propicia a corrupção. Como bem notou o nobre britânico Lord Acton, em 1887, “o poder absoluto corrompe absolutamente”. Pode não corromper o titular desse poder absoluto, mas na impossibilidade de um homem ter capacidade para controlar tudo, os seus auxiliares só precisam de o tornar refém e de ridicularizarem a sua autoridade para, num estalar de dedos, capturarem o Estado.
A exoneração, a 17 de Janeiro, do comissário-geral Paulo de Almeida, do cargo de comandante-geral da Polícia Nacional é paradigmática da arbitrariedade desse poder absoluto. O comandante participava na reunião interministerial de Defesa e Segurança dos países da África Central, em Brazzaville, por ordem do presidente João Lourenço. Tratava-se do encontro preparatório da reunião dos chefes de Estado da África Central. Ora, a presidência solicitou, por via telefónica, a saída do comandante da sala de reuniões para lhe comunicar que acabava de ser exonerado e, com efeito, este teve de abandonar a sala e abortar o cumprimento da agenda com os seus homólogos.
Foi um acto de autoflagelação do presidente e de humilhação da sua própria autoridade junto da comunidade internacional. Qual foi o sentido de enviar o comandante-geral da PN para uma missão no exterior e exonerá-lo a meio de uma reunião num país estrangeiro, com homólogos, ministros e altas patentes da região? É injustificável. É assim que decorre a governação de improviso, é esta a consequência dos poderes absolutos, que dispensam consultas sérias para decisões importantes.
A dado momento, o presidente deveria ter estabelecido uma visão holística e clara sobre o país e os angolanos, bem como um calendário para a revisão constitucional e para a devolução dos poderes excessivos atribuídos ao mais alto magistrado da nação. Um bom líder não é aquele que acumula poderes, mas sim aquele que serve o seu povo e gera harmonia, como um guia capaz de reunir saberes e competências para a boa governação.
João Lourenço deveria ter definido um padrão de probidade pública, planos de execução, metas e prestação de contas dos titulares de cargos públicos. Essas premissas teriam determinado o modelo de funcionamento do governo e a escolha de governantes capazes de ouvir a sociedade, e de conceber e executar soluções de acordo com a realidade do país, a abertura transparente do mercado e as necessidades do povo. Só assim teria sido possível marcar uma ruptura inequívoca com o passado de desgoverno.
Sem mudanças estruturais e sem clareza no modelo de governação, os titulares de cargos públicos e funcionários da administração pública, velhos ou novos, regressam aos velhos hábitos de esbanjamento e de uso dos seus postos de trabalho como balcões para negócios privados ou para a implementação de projectos alheados da realidade.
Como exemplo, temos o caso do Ministério dos Transportes. É incapaz de criar uma rede básica e funcional de transportes públicos (autocarros) em Luanda, já que implica a participação de outros órgãos estatais para a melhoria da rede rodoviária, a iluminação, a segurança, etc. Nem sequer tem capacidade para pôr a funcionar novamente os catamarãs do embarcadouro da Corimba para a Ilha. No entanto, salta para a construção de um metro de superfície, que provavelmente será mais um elefante branco, tal como a “eterna” construção do novo Aeroporto Internacional de Luanda.
Por isso é que a recente greve dos taxistas abalou Luanda com tanta facilidade. Não é possível comparar o serviço prestado pelos taxistas, no que diz respeito à mobilidade de mais de sete milhões de cidadãos em Luanda, com o péssimo desempenho do Ministério dos Transportes. Ao mesmo tempo que não se implementa o básico, parte-se para a megalomania.
É notória a anarquia crescente na função pública e a ausência de autoridade presidencial. Assim, vemo-nos outra vez a braços com uma administração pública desestruturada no cumprimento da sua missão primordial, que é a prestação de serviço público, um serviço para o bem comum.
O país não conhecerá dias melhores enquanto se mantiver uma sociedade tão desestruturada. A revisão constitucional, bem como a reorganização da administração do Estado e da sociedade são imperativos incontestáveis.
Directa ou indirectamente, o modelo de inspiração dos redactores da Constituição de 2010 foi Napoleão Bonaparte. Em cerca de dez anos, Bonaparte ergueu um estado forte, progressista e fonte de orgulho para todos os franceses.
Em Angola, quis-se criar uma Constituição que acolhesse um Bonaparte, um imperador criador e reformista. Ledo engano dos juristas. Em 2010, José Eduardo dos Santos já não queria criar nada e muito menos reformar. Só queria acumular riqueza para os seus familiares e amigos, reformar-se e ver futebol. Portanto, deram-lhe um monstro jurídico que o ex-presidente não soube usar, mas que foi usado por outros para proveito próprio e privado.
João Lourenço tem tentado utilizar os vastos poderes imperiais napoleónicos que a Constituição lhe confere. No entanto, falta-lhe rodear-se, tal como fez Napoleão, dos melhores: o imperador foi buscar Talleyrand para os Negócios Estrangeiros, Cambacérès para a Justiça e o Código Civil, Gaudin para as Finanças. Uma constelação de pessoas que o cercaram com a melhor sabedoria e que lançaram as bases do império. Mesmo assim, como se sabe, Napoleão pereceu perante o seu poder quase ilimitado. Imperador em 1804, em 1815 já estava exilado.
Daqui fica a lição sobre os homens providenciais, sejam césares ou napoleões. Desabam perante a força das circunstâncias. Por muito boas intenções que João Lourenço tenha, a magnitude dos seus poderes, a falta de mecanismos institucionais e a ausência de instrumentos de convergência política tornam-no num núcleo totalmente disfuncional.
Por isso, é necessária uma revisão constitucional, essencialmente institucional. A questão não é tirar poderes ao presidente, mas sim criar instituições que funcionem. Partilhar responsabilidades, de modo que todos se sintam obrigados a contribuir para o bem comum e não encarem o exercício de poder como uma “janela de oportunidade” para o saque.
O constitucionalismo garante o Estado de Direito, a boa governação e a democracia num estado, pois permite os freios e contrapesos (“checks and balances”) necessários para evitar o uso excessivo do poder estatal ou a captura do próprio Estado.
Mentalidade social
Terceiro: a mentalidade social é moldada por guerras, ditadura, má governação, políticas salariais odiosas, atraso no desenvolvimento humano e irresponsabilidade individual perante o bem comum. Ou seja, não há uma cidadania preparada para a construção do Estado e o desenvolvimento da nação. É uma cidadania de sobrevivência. Então, é preciso elevar o espírito de cidadania da sociedade no que diz respeito ao debate de ideias, e educá-la para a construção do bem comum e a promoção da solidariedade humana. A comunicação social do Estado, que deve assumir o papel de vanguarda na elevação do espírito de cidadania, faz o oposto. Cristalizou a sua conduta como caixa-de-ressonância de uma ordem política imperceptível até para muitos dos seus detentores.
Os cidadãos não precisam de esperar pelas agendas dos partidos políticos. Os grupos de interesse e de pressão têm de formular e discutir publicamente ideias estruturantes, que devem fazer parte de qualquer agenda de governação.
Mudar a mentalidade de uma sociedade que está pregada à autodestruição requer extraordinária capacidade de comunicação – uma das maiores fraquezas do poder de Lourenço –, de fomento de estudos sobre comportamentos sociais, sobre o “ser angolano”. É um processo que pode demorar até duas gerações, mas é preciso lançar as sementes o quanto antes.
É a partir dessa mudança de mentalidade que se podem empreender, com sucesso, reformas eficazes na administração do Estado, para que esta seja construída com base na vontade popular, no primado da lei e no exercício da democracia. Daqui se parte para o desenvolvimento da nação.
Cabe ao presidente reflectir publicamente e lançar as sementes dessa mudança. É ele quem tem de tomar a iniciativa da revisão constitucional abrangente, de alterar o modelo de governação e de educação, e de introduzir a meritocracia na administração pública e no governo.
Por sua vez, a sociedade não deve ficar à espera da vontade individual ou da capacidade do presidente. Muito menos deve aguardar por falsos ídolos que, das sombras do desespero colectivo e da fome, prometam vitórias e mudanças súbitas. Há bastantes mecanismos cívicos de pressão para que a intervenção social organizada, com base na discussão pública de ideias, contribua para a resolução dos problemas do povo e da construção do Estado com que sonhamos. É dessa base que vão emergir os líderes comprometidos com os verdadeiros anseios do povo angolano. Só assim o povo poderá dizer, com satisfação e barriga cheia, que tem os líderes que merece.