“Sempre imaginei que o paraíso seria algum tipo de biblioteca.” Assim se pronunciou o fantástico escritor argentino Jorge Luis Borges. E, de facto, há poucos deleites comparáveis a permanecer numa biblioteca rodeado do perfume envolvente do papel dos livros e das madeiras enceradas que habitualmente os acolhem.
Não conheço a Biblioteca da Presidência da República de Angola e não sei se tem alguma semelhança com o paraíso prometido por Borges. Conheço a Biblioteca da Assembleia Nacional, cujo edifício monumental custou mais de 250 milhões de dólares e gasta o equivalente a mais de dois milhões de dólares por mês em manutenção. A sua biblioteca aproxima-se do inferno. É uma cave recheada de estantes escuras sem livros…
Aparentemente, a proposta de Orçamento Geral do Estado de Angola para 2021 engloba a quantia de 3,1 mil milhões de kwanzas para a Biblioteca Presidencial. Se é para construir uma escada para o paraíso, só temos de aplaudir. Assim, podemos esperar que a Biblioteca da Presidência da República de Angola se torne uma instituição de referência mundial a que todos os candidatos a sábios sobre coisas de Angola recorram.
A Biblioteca do Congresso (parlamento) norte-americano é um exemplo intemporal de uma biblioteca do poder político que é uma instituição mundial. A Biblioteca do Congresso é a maior biblioteca do mundo, com milhões de livros, gravações, fotografias, jornais, mapas e manuscritos no seu acervo. Ao mesmo tempo, a Biblioteca é o principal instrumento de investigação ao dispor do Congresso dos EUA.
Não há razão para que a Presidência da República angolana não tenha uma biblioteca especializada nos assuntos que interessam à governação. Contudo, convém colocarmos previamente algumas dúvidas metódicas. Será que existe de facto uma Biblioteca da Presidência, ou estamos a falar de um caso equivalente ao da pretensa Biblioteca da Assembleia Nacional: um buraco fundo sem livros?
João Lourenço, quando iniciou o seu mandato em 2017, apresentou ao país uma visão estratégica clara, de que aliás muitos duvidaram, mas que era estimulante. Essa visão assentava num país livre da corrupção e com prosperidade económica para todos.
Três anos volvidos, a visão existe, mas está algo turva. O combate à corrupção concretizou-se, contudo, depois de um início fulgurante, corajoso e determinado, encontra-se emperrado e confuso. Os casos arrastam-se no meio judicial, uns parecendo parados, outros avançando, mas de forma pouco transparente. A recuperação de activos é positiva, embora não esteja devidamente explicada. E, infelizmente o sentimento de impunidade continua a prevalecer, repetindo-se sob a forma de farsa as tragédias do passado.
É o caso dos relógios do ministro dos Transportes Ricardo Veigas D’Abreu. Aparentemente, este ministro, quando presidia ao falidíssimo Banco de Poupança e Crédito (BPC), não achou melhor forma de poupar dinheiro do que despender 550 mil dólares em relógios para oferecer aos funcionários.
Ex-ministros e ex-presidentes de bancos ou empresas públicas continuam a passear-se todos os dias impunes por Luanda sem qualquer vergonha. Há a ideia de que o combate à corrupção apenas atinge três ou quatros “grandes” do antigo regime e que depois tudo vai continuar na mesma.
Obviamente, a visão de João Lourenço sobre a corrupção é boa, mas a execução – ao entregar a tarefa a uma Procuradoria-Geral da República (PGR) conivente com o passado e sem agilidade processual e técnica – compromete o sucesso.
É fundamental criar um órgão musculado independente da PGR, com um enquadramento legal próprio para exercer o combate à corrupção.
Em relação ao outro óculo da visão do presidente – a economia – a situação é pior. É evidente que a reestruturação da economia passa pela aposta numa economia de mercado livre. Mas não só. Implica uma renovação completa do papel do Estado.
Aquilo a que assistimos na economia é preocupante. Os índices económicos são miseráveis e a ministra Vera Daves parece a responsável das finanças da Ruritânia (país imaginário da Europa Central onde o principal problema económico é o défice orçamental). Angola não é a Ruritânia e o Estado, antes de tudo, tem de criar o clima social para que as empresas prosperem.
Tenho seguido a saga de um jovem jornalista promissor que resolveu criar uma pequena empresa moderna na área da beleza e estética. Ora, a última notícia que li sobre essa aventura era que o aspirante a empresário não tinha alvará porque o ministério do Comércio não tinha papel para imprimir os referidos documentos… Fazer avançar uma pequena empresa é uma saga diária.
A recuperação da economia começa pelo contexto e pelas instituições. Infra-estruturas, promoção do investimento, desburocratização efectiva. Há que realizar uma grande reviravolta da economia, libertar as forças deste país amordaçado e canalizar as forças dos jovens e dos empresários para a revolução na economia. O pragmatismo de Deng Xiaoping que João Lourenço nos prometeu tem de ser renovado.
Começámos com uma citação e rematamos com outra do reformador chinês: “Pobreza não é socialismo. Ser rico é glorioso.” E acrescentava: “Enriquecer numa sociedade (…) significa prosperidade para todo o povo.” Foi esta segunda parte que o poder político angolano não percebeu no passado, ou então fez de conta que o enriquecimento dos poderosos era igual ao enriquecimento da sociedade. Não o é. A riqueza produzida tem de ter um efeito que a todos beneficie, e não ser uma mera estatística.
Não sabemos se a Biblioteca Presidencial de João Lourenço é a ponte para o paraíso, mas sabemos qual o paraíso para onde queremos que Angola se dirija.