Angola/Cafunfo: “Discursos a preto e braco” – Jacques dos Santos

Muito se falou e muito se há-de falar ainda de Cafunfu. Das ocorrências ali registadas que preocupam seriamente o país. Que perturbaram as emoções da maior parte dos angolanos. Despertaram em mim uma mistura de sentimentos, dúvidas e, sobretudo, uma tremenda frustração por reconhecer o pouco ou nada que sei do meu país. Das pessoas que habitam a região leste de Angola onde, por curiosidade, permaneci cerca de dois anos no cumprimento de serviço militar no exército colonial. Não conheço Cafunfu, nem tampouco as povoações que a circundam. Naquele tempo pertencia a Malange e eu andava pela zona da Lunda Sul de hoje e pelo Moxico. Aquartelado na antiga Nova Chaves, hoje Muconda, o perímetro de acção da Companhia mista de infantaria VH, envolvia Saurimo (Henrique de Carvalho), Luena (Luso) e Teixeira de Sousa (Luau).

Foi nessa época que fiz amizade com Jorge Ferreira Carneiro e Isaac da Conceição, ambos precocemente desaparecidos, com Aureliano de Oliveira Neves (Voto Neves), Malheiro Chitungo Elavoco, Mário Palege Jasse, Simba Gime, entre outra rapaziada. Lidei de perto com o alferes miliciano cabo-verdeano, Flávio Delgado, um amigo com quem mantenho contacto permanente. Foi no decurso daquela temporada inesquecível, que muitos de nós, reflectimos sobre o nosso papel de soldados portugueses e o futuro que nos esperava, a nós e à nossa terra. Sonhos da juventude em ebulição, leituras proibidas, conversas perigosas no meio de jogos de futebol e sessões de música angolana, próximas da independência de Angola.

Terminado o período da missão, regressámos a Luanda, em Dezembro de 1966. Perigosa travessia em jangada no Rio Cassai, tomada do combóio em Teixeira de Sousa, passagem por Silva Porto (Kuito), término em Nova Lisboa (Huambo) e, depois, autocarro para Luanda. Uma viagem registada precisamente dois dias antes da acção violenta que marcaria, em Teixeira de Sousa, o surgimento oficial da Unita, na cena da luta pela libertação de Angola.

Entendi falar deste episódio, num momento conturbado da vida do país independente em que nos surgem em palco personagens sinistras, com o seu quê de surrealismo que, perigosamente, colocam em causa, tudo o que foi feito com trabalho e sangue para edificarmos um país unido, democrático, a legitimar todos os seus cidadãos e descendentes, nos termos da Lei da Nacionalidade.

Na semana passada registei o realismo, a serenidade e o bom senso de figuras destacadas da nossa sociedade. Os pronunciamentos da doutora Luzia Sebastião, dos jornalistas Ismael Mateus e Graça Campos, do político Marcolino Moco e alguns mais conseguiram transmitir luz de verdade sobre a escuridão dos acontecimentos. Intervenções diferentes em tudo, dos discursos do cidadão preto, assumido adepto do Protectorado – talvez o mesmo que foi detido por estes dias em Luanda –, um indivíduo que vomitou ódio contra os brancos, sem contenção na língua nem noção da ideia, desconhecendo que existiram os que, juntando-se, nos momentos mais críticos da luta e nas mais difíceis circunstâncias, aos líderes negros angolanos das várias tendências, foram fundamentais para que a sua fala fosse possível hoje. Foram os de pele mais clara como Viriato, Lara, Dáskalos, Jacinto, Machado, Luandino, Cardoso, Pepetela, Juju, Kassessa, os Pinto de Andrade, apenas alguns de uma lista imensa que tornam eterno o nosso orgulho. Como se não bastasse a verborreia do preto imbecil, seguiu-se a conversa sem nível da branca, tão imbecil quanto o preto, porém mais oportunista e, por isso, mais perigosa. Empurrada por alguém que a promove sem cuidado, surge-nos nos ecrãs da TPA, a participar de um programa prestigiado mas longe de ser isento, num exercício de demagogia pura, descaradamente, a ressuscitar os demónios do racismo que sustentam a mediocridade. A branca, na sua tristonha intervenção, mostrou-se pela nulidade natural da sua pessoa e pelo imenso vazio da sua mensagem.
Utilizando linguagem perigosa, plena de malandragem, oportunismo e ambição, mostrou a quem quis ver, todos os atributos que caracterizam a gente sórdida. São pessoas que, como ambos, preto e branca, jamais terão a possibilidade de entender como os cidadãos norte-americanos, há doze anos, elegeram o mulato Barack Obama como seu presidente, tendo hoje uma vice-presidente negra, recém-eleita. Do preto, não possuo qualquer dado que me permita qualificá-lo. Da outra, a parceira branca de raciocínio oco, na sofreguidão oportunista que a impede de percepcionar os efeitos da exploração rácica, disse asneiras irreparáveis de que, infelizmente, a direcção da TPA se tornou cúmplice, num descuido (?) indesculpável da sua linha editorial. Foi em muito má hora que decidiram convidá-la para aquele triste sarau.

Sou conhecido. Não sou tipo de falar à toa. Tenho o testemunho de angolanos, portugueses e luso-angolanos, uma mão cheia de provas dos assuntos e dos factos vergonhosos, alguns que eu próprio já conhecia e me permitem qualificar essa senhora. É uma pessoa sem escrúpulos! Perita em traição, roubo e burla contra pessoas e instituições!

Se me preocupa a facilidade com que é dada voz e protagonismo a estas estranhas e tristes figuras, também me aflige como são negadas respostas a cidadãos que, ao abrigo da Lei, aguardam infinitamente resposta da estação de televisão estatal angolana, o seu momento e hipótese de defesa. Quero referir-me claramente sobre questões de índole rácica com que foram mimoseadas entidades credíveis por uma ilustre cientista da história e da política angolana. Sejamos claros, a TPA, presta um mau serviço à Nação e precisa urgentemente de ser refundada.

Ver depois um órgão da importância e com as responsabilidades do Bureau Político do MPLA, a produzir um comunicado tão deficiente, tanto na forma como no conteúdo, aguardado pelo impacto forte que provocaria face ao contexto actual, é deprimente e ao mesmo tempo preocupante. Porque, tristemente ferido de uma falsa identidade, já que empola a negritude e explora subtilmente o racismo, de um modo que nunca me habituei a ver nos procedimentos do glorioso MPLA, onde se defendeu sempre, para além da unidade nacional, a ideia de que o racismo tem, sempre teve, uma base económica a sobrepor-se à cor da pele de cada um. Não prosseguir nessa linha é dar campo aos mais reles ataques à condição de origem étnica. E é assim que passamos a compreender os protagonismos de certos indivíduos, transformados em gestores, dirigentes e deputados do partido que nos habituamos a respeitar, e cujas intervenções, de tão medíocres, chegam a causar náuseas, mesmo a quem não sofra do estômago.

Finalizo, afirmando que apoio, sim, a intervenção pública dos padres e bispos católicos e não apenas esses, no momento que vivemos. Sou absolutamente a favor das suas oportunas, conscientes e consistentes intervenções a favor da nossa Angola e da unidade entre os seus filhos. Primeiro, porque são cidadãos como qualquer um de nós, com o seu direito de opinião adquirido. Têm necessariamente preferências, como todos nós temos, por clubes de futebol ou por organizações políticas. Mas ao contrário de muitos de nós, os respeitáveis prelados falam da Angola total, dos nossos concidadãos e das suas dificuldades e não se imiscuem na luta e nos programas partidários de nenhuma agremiação. É preciso vencer a pandemia e a crise económica com gente honesta e esclarecida. Só assim Angola nos merece. Até domingo próximo, à hora do matabicho.

Lisboa, 13 de Fevereiro de 2021

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