Historiador Fernando Sakuayela apresenta razões históricas para o conflito, mas defende que autarquias seriam “um grande modelo” para resolver os vários problemas que assolam Angola, como os casos das Lundas e Cabinda.
Há 10 dias que a vila de Cafunfo, na província angolana da Lunda Norte, é um tema que marca a atualidade. A localidade foi palco de incidentes entre manifestantes e a polícia nacional, que terão feito mais de uma dezena de mortos, segundo a oposição e a sociedade civil, que falam num “massacre“.
Já as autoridades dizem ter atingido mortalmente seis pessoas ligadas ao Movimento do Protetorado Português Lunda Tchokwe (MPPLT) – que defende a autonomia da região rica em diamantes – que tentaram invadir uma esquadra policial a 30 de janeiro.
Em entrevista à DW África, o historiador e coordenador do projeto AGIR, Fernando Sakuayela Gomes, lembra que a exploração de diamantes na região acentuou as desigualdades e as reivindicações das populações. E defende que o Governo poderia evitar mais “banhos de sangue” ao avançar com as eternamente adiadas eleições autárquicas.
DW África: O que estará verdadeiramente na origem deste conflito?
Fernando Sakuayela (FS): A situação que ocorre na região leste de Angola envolvendo os massacres de Cafunfo é algo que encerra alguma complexidade de abordagem pelo facto de ser a interpretação do fenómeno que tem um antecendente histórico, uma vez que as Lundas eram uma região que comprendiam um protetorado. Porém, à luz a descolonização, fruto do Acordo de Alvor, no seu artigo Nº3, tornou Angola território uno e indivisível. E o argumento do Protetorado vem no sentido em que as populações das regiões das Lundas eventualmente não se sentem incluídas nem integradas no ritmo de desenvolvimento que o país vive, consequência da exploração dos seus recursos.
O massacre, de forma concreta, poderá ter várias causas que explicam esses acontecimentos. Um deles poderá estar ligado à forma como terminou a guerra civil em Angola. O ex-Presidente da República procurou acomodar algumas elites militares, para-militares e para-policiais conferindo a estes explorações de diamantes. E quando se faz a “Operação Transparência”, isso choca com alguns interesses e esses elementos vão entrar em rota de colisão. E o povo é aqui mobilizado para que se manifeste e reivindique uma melhor distribuição de riqueza.
DW África: Portanto, estes episódios dramáticos que têm acontecido em Cafunfo e Cabinda são sinal de que é preciso, mais do que nunca, mudanças profundas em Angola em termos de governação. Seria tempo de se fazer uma regionalização e uma reforma em Angola?
FS: Nós temos em Agola uma obsessão pelo Estado unitário e pelo centralismo político. Esta centralização obsessiva vai descambar em vários conflitos, uma vez que somos uma realidade política-administrativa muita nova, temos perto de 45 anos de independência. Essa obsessão pelo Estado centralizado, sem partilha do poder e sem descentralização é contra a nossa cultura e antropologia, bem como o nosso tecido administrativo. E era bom que as elites pós-independência discutissem o modelo de convivência numa Angola independente, que passaria pela descentralização e nem que isso implicasse a regionalização, porque somos tão distintos, do ponto de vista cultural, que nos tornar um só povo e uma só nação estariamos a ferir o princípio da convivência harmónica em Angola.
DW África: E, portanto, as eleições autárquicas eternamente adiadas em Angola são mais urgentes do que nunca?
FS: As autarquias seriam um grande modelo para resolver os diversos problemas que assolam o país, porque as autarquias trarão a partilha do poder e é isso que se precisa em Angola para podermos acomodar as várias elites políticas. Porém, enquanto o MPLA insistir no adiamento sine die das autarquias locais, é uma prova bastante clara de que a paz em 2021 vai dançar na corda. Se os povos não se sentem incluídos no modelo de governação, não têm nada a perder se não as próprias vidas. E o Governo pode evitar esses derrames de sangue efetivando as autarquias, que vão descomprimir e distender o clima de tensão que o país vive.
DW África: Os benefícios para a população, como referiu há pouco, ao longo dos anos têm sido nulos, portanto a região é um barril de pólvora. Acha que a autonomia reivindicada pelos vários movimentos tem razão de ser?
FS: As reivindicações têm razão de ser. Por que é que as Lundas e Cabinda não podem ser para Angola aquilo que é a Madeira para Portugal? Precisamos de sair do modelo que temos hoje, que não conseguiu dar resposta aos problemas que Angola vive. Não podemos aceitar e nem admitir que somos de Cabinda ao Cunene um só povo e uma só nação, somos um Estado multinacional. Temos em Angola várias nações. O importante é discutir à mesa e cada um dizer o porque quer a regionalização ou não. Não devíamos usar a soberania para nos arrogarmos e fazermos aquilo que entendermos, senão continuaremos a legitimar os pronunciamentos de um comandante da polícia que mais se aproxima de um Neandertal do que a um Homo Sapiens.