Combater a corrupção com um poder judicial corrupto é como pescar com uma cana de pesca podre: quando o peixe morde a cana quebra.
Não é possível ter uma luta contra a corrupção eficaz quando o principal meio utilizado é ele mesmo corrupto ou, pelo menos, sofre de acusações permanentes de práticas corruptas. É fundamental que a Procuradoria-Geral da República lance um programa especial de investigação da corrupção da magistratura judicial e proceda a uma verificação exaustiva dos comportamentos inadequados dos operadores judiciários. E é neste contexto que tem suma importância o processo judicial que vamos referir abaixo.
No âmbito do processo n.º 985/20-B, correu os seus termos um julgamento criminal na terceira secção criminal do tribunal da comarca de Luanda, em que Kushmar Amathe e Miguel Francisco Ribeiro Mateus eram acusados da prática dos crimes de falsificação de documentos e ainda de autoria e cumplicidade, respectivamente, de um crime de abuso de confiança. Por acórdão de 23 de Setembro de 2021 do juiz Edson Augusto Bernardo Escrivão, os réus foram absolvidos dos crimes.
A história subjacente ao julgamento conta-se rapidamente, mas não é relevante para este texto. O que é relevante é o que se passa depois do acórdão absolutório.
O ofendido neste caso é Rui Emídio Manuel, sócio da empresa RIUSOL – COMÉRCIO GERAL E INDÚSTRIA, S.A, detentora de uma unidade fabril sita na Zona Económica no Município de Viana, vocacionada para a fabricação de produtos plásticos, instalada numa área total de 18.799,49 metros quadrados.
Segundo a acusação produzida pelo Ministério Público e secundada por ele, os réus, concertadamente sabendo que o ofendido Rui Manuel não se encontrava em território nacional no dia 18 de Agosto de 2017, e sem o consentimento dele, forjaram um contrato de cessão da posição contratual pelo qual a empresa Riusol cedeu a posição contratual que tinha na zona económica especial a favor da empresa Maximus, cujo sócio é o co-réu Miguel Francisco Mateus, assim despojando Rui Manuel da sua empresa por um acto notarial falso. O juiz Escrivão, mediante o julgamento, decidiu que a maior parte das alegações não estava provada e que, a haver ilícitos, seriam de natureza cível e não criminal. Assim, de acordo com o princípio da intervenção mínima do direito penal, absolveu os réus.
É a partir desta absolvição que começa uma possível importante história de corrupção. Insatisfeito com o que considerava ser uma “golpada” efectuada ao seu património empresarial, Rui Manuel, resolveu recorrer da sentença para o Tribunal Supremo, o que é absolutamente normal.
Entra em acção Emílio Mesquita, secretário administrativo do Tribunal Provincial de Luanda. Segundo nos contou Rui Manuel, apresentando troca de mensagens WhatsApp e de correio electrónico que diz comprovar a sua versão, Mesquita, aparentemente, ter-se-ia prontificado a garantir que o recurso junto do Tribunal Supremo teria vencimento, em troca de determinadas compensações que Rui Manuel lhe entregaria.
Transcrevemos uma mensagem trocada entre Rui Manuel e Emílio Mesquita em 28 de Dezembro de 2021 às 15h54: “agora no Supremo falaste em 30 milhões, depois alteraste em 40 milhões, quando viste a minha aflição falaste em 100 milhões, já te dei 20 milhões, falaste que também queres sociedade na Riusol, SA, ainda por cima 20% das ações”.
Este excerto resume o que Rui Manuel alega. Após a decisão negativa do juiz Escrivão, Rui Manuel terá entregado 20 milhões de kwanzas em notas no gabinete de Emílio Mesquita, no Tribunal de Comarca de Luanda. Contudo, o secretário do tribunal não terá ficado satisfeito e foi exigindo mais, até chegar aos 100 milhões de kwanzas e uma participação de 20% na Riusol para ele e outra para Délcio Augusto Alberto. Nesse sentido, na troca de correio electrónico que se encontra em nossa posse, consta o “Acordo Parassocial” enviado pelo secretário do tribunal a Rui Manuel em 25 de Novembro de 2021. Aí refere o secretário do tribunal: “Bom dia mano Rui. Conforme conversa mantida envio o acordo parassocial para leitura, analise, corrigir se for necessário e deverá ser assinado por todos intervenientes, e reconhecido presencialmente.” Segundo o referido acordo “O primeiro outorgante [Rui Emídio Manuel] pretende ceder 20% [da Riusol] ao segundo e 20% terceiro outorgantes Emílio Silveira Ferreira Mesquita e Delcio Augusto Alberto, respectivamente”.
Por sua vez, Emílio Mesquita, nega qualquer acto de improbidade da sua parte. “Ele [Rui Manuel] pediu-me ajuda. A versão dele é apenas para sujar-me.” Segundo o secretário administrativo do tribunal, “tentei ajudá-lo porque sentiu-se injustiçado. Indiquei-lhe um advogado para o ajudar. Na verdade, só indiquei o advogado”. À denúncia de Rui Manuel segundo o qual lhe teria entregado 20 milhões de kwanzas no seu gabinete, em pleno tribunal, Emílio Mesquita considera que “o erro foi ter recebido o dinheiro no gabinete, para tentar ajudá-lo. Dei uma de bom samaritano e deu errado”. “Quando ele disse-me que já não queria a minha ajuda, pediu a devolução do dinheiro e assim fiz”, informa. Emílio Mesquita diz que Rui Manuel já apresentou uma queixa ao Conselho Superior da Magistratura, a qual está a seguir os seus trâmites.
Por sua vez, Rui Manuel garante que Emílio Mesquita apenas lhe devolveu 11,1 milhões de kwanzas. O “Emílio entregou, no dia 28 de Dezembro, nove milhões e 400 mil kwanzas [em numerário] ao meu estafeta Emanuel Ventura da Cunha. No dia 1 de Janeiro, efectuou uma transferência, via multicaixa express, de um milhão e 700 mil kwanzas para a minha conta pessoal”.
Rui Manuel insiste que o dinheiro não poderia ter sido para pagamento de honorários de advogados. “O Emílio não é advogado e nunca me apresentou nenhum advogado. Não assinei procuração ou contrato de honorários para um advogado. O meu advogado, desde sempre, é o dr. Evaristo Maneco. Nunca troquei de advogados e nem sequer manifestei intenção de fazê-lo.”
Emílio Mesquita é secretário administrativo do Tribunal Provincial de Luanda, no entanto, mais importante do que isso, é filho do juiz conselheiro Dr. Domingos Mesquita, hoje no Tribunal Supremo, e entre 2014 e 2016 exercendo as funções de juiz presidente do Tribunal Provincial de Luanda. Não existe nas comunicações a que tivemos acesso qualquer referência ao pai do secretário, mas é óbvio que ele poderá ter usado essa qualidade para certificar a sua importância ou capacidade de diálogo e influência junto do Tribunal Supremo.
Em suma, nestes factos poderemos ter um exemplo típico de corrupção no poder judicial, que só não avançou mais porque o elemento passivo do crime se tornou ganancioso e começou numa escalada de pedidos. Não se trata de condenar ou absolver ninguém perante a factualidade apresentada, e convém sempre lembrar o fundamental princípio da presunção da inocência. Contudo, temos indícios suficientes, e pelos vistos participantes dispostos a declará-lo expressamente, da ocorrência de um ou vários crimes de corrupção no sector judicial. Compete à PGR abrir o inquérito, começando por investigar os actos de Emílio Mesquita. Sem extirpar o poder judicial de todos os fumos de corrupção, não poderá haver um combate à corrupção vitorioso e sistemático em Angola.