Este sábado (16.10) marca o Dia Mundial da Alimentação. Com o aumento descontrolado da fome em Angola, milhares de famílias vivem da mendicidade. A DW África ouviu as histórias de quem depende do lixo para sobreviver.
Assinala-se este sábado (16.10) o Dia Mundial da Alimentação. Em Angola, muitas famílias dependem de ajudas e de alimentos retirados de lixeiras e contentores para saciar a fome.
O agravamento da fome e da pobreza é tão grave que muitas organizações, com realce para a Igreja Católica, já solicitaram ao Executivo para decretar estado de emergência na região do sul do país.
A situação socioeconómica das famílias, o desemprego, a desestruturação familiar, as alterações climáticas e a falta de políticas para contrapor os fenómenos naturais são apontados por especialistas e organizações da sociedade civil, como as principais causas que concorrem para a precariedade e vulnerabilidade de muitas famílias angolanas.
Nas principais cidades, pessoas com fome se concentram para pedir esmolas e recolher restos de alimentos e ferro fundido para a venda.
Histórias da fome
Cada um tem a sua história de vida, mas todos partilham um presente comum – a procura pela sobrevivência na rua, para driblar à fome e enganar o exigente estômago ou conseguir um emprego e dar dignidade à família.
Manuel Fernando, de 28 anos de idade, deixou a cidade do Wango Kongo, província do Kwanza, em 2016, para se radicar na capital do país, Luanda. Sem uma ocupação fixa para custear as despesas de uma renda, encontrou na rua o abrigo e, nos contentores de lixo, a fonte para se alimentar.
Hoje, dedica-se à recolha de material ferroso em contentores, para além de restos alimentares. A atividade tem servido para angariar algum dinheiro, mas não chega para acudir as suas necessidades, por isso tem contado com a mão caridosa de pessoas de bem.
“Apanhamos latas nos contentores de lixo, depois levamos para pesar e vender, mas o dinheiro que nos pagam não serve para quase nada. Pagam-nos 200 kwanzas (o equivalente a 29 centavos de euro) por quilograma. Agora imagina quantas latas temos que recolher para completar cinco quilogramas?”, indagou.
Apesar das dificuldades, o jovem Manuel pensa um dia sair da rua e deixar de depender dos contentores para se alimentar. “Quero ter minha família e um emprego digno e deixar de viver na rua e comer no lixo”, disse.
Com os filhos nas ruas
Maria José é outra cidadã que faz da rua o seu ganha-pão. A viúva e mãe de cinco filhos conta que a sua vida conheceu um reverso após a morte do marido, há três anos. Sem apoio familiar para sustentar os filhos, decidiu dedicar-se a pedir esmolas na zona do 1º de maio, centro histórico da capital angolana.
Acompanhada da filha mais nova ao colo, a jovem mulher de 38 anos depende da sensibilidade dos transeuntes que se comovem e deixam algum dinheiro. Com os olhos ensopados em lágrimas, a cidadã diz estar a passar por momentos difíceis para sustentar a família.
“Está difícil, meu irmão. Nem todos entendem a nossa situação. Há aqueles que te dão alguma coisa, mas outros ainda te ofendem”, revelou.
Nos últimos tempos, são recorrentes os casos de uso de menores por adultos na via pública como “isca” para chamar a atenção e comover potenciais doadores. Maria confirma a prática, mas nega que todos recorram a estas artimanhas para apelar à boa-fé das pessoas.
“É verdade que isso acontecia antes, mas desde que a polícia começou a prender as pessoas que faziam isso nunca mais vimos ninguém a fazer isso”, afirmou. “A sociedade julga e condena as pessoas que pedem esmolas, sem conhecer a condição de cada pessoa.”
“Muitos pensam que nós estamos aqui porque somos preguiçosos ou não queremos fazer nada para as nossas vidas, mas isso não é verdade. Eu tenho força para trabalhar, mas ninguém me dá um emprego”, desabafou.
Adolescência marcada pela fome
Outro morador de rua ouvido pela reportagem da DW África é Joaquim Domingos, de 14 anos de idade, oriundo da província do Huambo, região centro-sul do país.
O adolescente diz que abandonou a casa dos pais, no Huambo, na companhia de amigos, em busca de oportunidades de trabalho em Luanda. Mas o que parecia um sonho transformou-se em pesadelo, logo à chegada na metrópole. Sem familiares e lugar para morar, a rua foi o destino encontrado.
O jovem dedica-se à recolha de sucatas e ferro fundido e a pedir esmola. Diz que o pouco que ganha ajuda para acudir as suas necessidades e que, quando não tem dinheiro para comprar alimentos, recorre aos contentores à procura de restos alimentares. O seu sonho é um dia retomar os estudos e formar-se em Medicina.
Agravamento da situação social
Para o sociólogo angolano Memória Ekolika, a situação socioeconómica e as alterações climáticas no sul do país tem estado a contribuir para o agravamento da situação social das famílias. O docente universitário aponta, igualmente, o desemprego e a falta de políticas públicas que possam antever soluções para as dificuldades apontadas.
Existe uma tendência de todas pessoas entrarem numa pobreza multidimensional, mesmo aqueles que, talvez, tenham a esperança de trabalho do tipo permanente, uma profissão ou trabalho intermitente.
O sociólogo defende a necessidade de maior empenho da classe governante na resolução dos problemas sociais das populações. “Pensamos que é preciso muito trabalho por parte do Estado. É preciso muito trabalho por parte de toda sociedade para que possa responder com alguma eficácia às necessidades das populações”, referiu.
Segundo dados do Índice Global da Fome (IGF), Angola aparece na lista dos 40 países do mundo onde a situação da fome é caracterizada como sendo grave.
Bispos lançam apelo
Nos últimos tempos, várias organizações da sociedade civil têm se pronunciado sobre a necessidade do Executivo angolano de declarar o estado de emergência no sul do país, face à longa estiagem que assola aquela região do território nacional.
A Conferência Episcopal de Angola e São Tome (CEAST) juntou-se ao “coro” dos apelos.
Importa salientar que o Governo angolano anunciou a criação de uma força-tarefa para garantir operações logísticas e técnicas para a distribuição de 5.176 toneladas de bens diversos para as populações que enfrentam dificuldades por causa do fenómeno da estiagem.