Em pouco mais de três dias, João Lourenço conseguiu aprovar alterações à Constituição e, pelo meio, tirou “uma pedra do caminho’: o presidente do Tribunal Constitucional. Proposta passa, mas deixa a Justiça com divergências internas. Há quem sublinhe as divisões, mas políticas, dentro do MPLA. Justiça com difícil equilíbrio.
É a segunda vez que um presidente de um tribunal superior bate com a porta, pondo em evidência fissuras na Justiça. As duas vezes ocorreram nesta legislatura, sob a presidência de João Lourenço e já entram na história da política angolana. Desta vez, foi o presidente do Tribunal Constitucional (TC), Manuel Aragão, a pedir a demissão, numa saída prontamente aceite pelo Presidente da República.
Em 2019, fora o presidente do Tribunal Supremo, Rui Ferreira, alegando ter sido vítima de uma “campanha intensa e cruel de mentiras, deturpação de factos, intrigas, calúnias e insultos”. Além destas demissões, João Lourenço pode juntar no ‘portfolio’ a saída do malogrado Provedor de Justiça, Carlos Ferreira Pinto, em Abril deste ano.
Na semana passada, Manuel Aragão saiu depois de ter votado, vencido, a proposta de revisão constitucional apresentada pelo Presidente da República e que mereceu rapidez em todo o processo. A proposta foi apresentada em Maio e aprovada mês e meio depois. Em Julho, já estava no TC para a fiscalização preventiva e, um mês depois, recebia a aprovação do tribunal com reservas.
Manuel Aragão lançou um alerta de que estava “em causa a separação de poderes” e que o país enfrentava um “suicídio do Estado democrático e de Direito”. No voto contra, Aragão é acompanhado pelo juiz-conselheiro Carlos Teixeira.
Sem responder directamente a Manuel Aragão e sem fazer qualquer referência ao juiz, o ministro de Estado e Chefe da Casa Civil acabou por dar uma resposta, no dia em que o Parlamento voltou a aprovar a proposta de lei, depois de eliminadas as normas que os juízes consideraram “inconstitucionais”. “O percurso que acabámos de descrever revela bem o normal funcionamento das instituições angolanas, a interdependência de funções que existe entre os poderes do Estado, sem prejuízo da separação de poderes constitucionalmente prevista. Este percurso é revelador de que o Estado de direito em Angola é uma realidade que se consolida todos os dias, com o empenho de todos”, sublinhou Adão de Almeida.
As mexidas nos tribunais e na Provedoria não deixam indiferente os actores políticos e da Justiça, levantando preocupações. Uma delas é a do advogado Benja Satula, que coloca dúvidas sobre a robustez do sistema de justiça. “Estamos a caminhar muito mal, porque essas garantias de independência, de imparcialidade e inamovibilidade, que são garantias dos juízes parece que não estão a funcionar muito bem”, afirmou à agência Lusa. Além disso, o advogado alerta que Angola está “a caminhar para um suicídio e para uma captura das instituições que deveriam desempenhar a separação de poderes num Estado democrático e de Direito”, admitindo, por exemplo, que as demissões de Manuel Aragão e de Rui Ferreira tenham sido forçadas por “pressões políticas”.
É precisamente do ponto de vista político que surgem as análises mais críticas. O jurista e comentador Albano Pedro encontra, na divisão dentro do MPLA, as razões, por exemplo, para a demissão de Manuel Aragão: “Passa a ideia de que Aragão faz parte do grupo que está a ser taxado com nomes de animais, como marimbondos e caranguejos, que está a acontecer dentro do MPLA. O MPLA está hoje dividido entre os que estão a ganhar nomes de animais e os que estão alinhados ao modo de combate à corrupção que João Lourenço assumiu.”
Em declarações à Rádio Essencial, “Albano Pedro lembra que temos estado a acompanhar uma viragem na organização dos tribunais superiores em que o TC vai perdendo privilégios a favor do Tribunal Supremo”.
O TC também perdeu o lugar no Conselho da República, o que é visto, por Albano Pedro, como mais uma razão para o “mau clima”.
Leitura semelhante tem Nuno Dala, professor universitário e ex-membro do Grupo ‘15+2’. O activista argumenta que “os últimos acontecimentos são indícios de que o país corre o risco de entrar em instabilidade política”, alertando para o “perigo” que isso possa causar.
Mais cáustico, William Tonet, jurista e director do jornal ‘Folha 8’, não tem dúvidas de que pouco resta aos juízes: “ou os juízes que defendem a ideologia continuam com o pé na lama, ou os juízes fartos de terem o pé no lodo se libertam da pocilga”.
As desconfianças quanto à falta de independência dos tribunais angolanos já levou a justiça espanhola a recusar a extradição do antigo secretário de João Lourenço, Carlos Panzo, para Angola.
Cronologia de uma revisão agitada
• 2 de Maio: Presidente da República propõe uma revisão da Constituição. Apresenta a proposta de lei da Revisão da Constituição. Unita manifesta-se contra e o líder do partido, Adalberto Costa Júnior, mostrou-se surpreendido. O líder da Unita até apoia uma revisão, mas “mais profunda”.
• 22 de Junho: A Assembleia Nacional aprova a primeira revisão ordinária parcial da Constituição, 11 anos após a entrada em vigor, obtendo uma maioria qualificada, com 152 votos a favor, nenhum contra e 56 abstenções.
• 7 de Julho: Presidente da República envia Lei de Revisão Constitucional para a fiscalização preventiva do Tribunal Constitucional (TC) com “regime de urgência”.
• 9 de Agosto: Acórdão do TC dá ‘luz verde’ à revisão da Constituição, mas levanta dúvidas sobre a constitucionalidade de alguns artigos. Os juízes-conselheiros Manuel Aragão, presidente do TC, e Carlos Teixeira votam contra. Na declaração de voto de vencido, Manuel Aragão alerta para o que chama “um suicídio do estado democrático de Direito”.
• 12 de Agosto: Presidente do TC pede a demissão. Entrega o pedido ao Presidente da República que, imediatamente, aceita. Carlos Feijó, considerado o pai da Constituição de 2010, concede uma entrevista à TV Zimbo, considerando o acórdão do TC “inconstitucional”.
• 13 de Agosto: A Assembleia Nacional aprova Proposta de Lei de Revisão Constitucional, nos termos definidos pelo Acórdão do TC. Recolhe 149 votos a favor, cinco contra e 49 abstenções.