Angola: “José Eduardo dos Santos não deixou os cofres vazios” – Ricardo Vita

A história se passa no topo do Estado de um país escandalosamente corrupto, Angola, que tem uma elite afro-conveniente forjada do nada e que canta em línguas nacionais, principalmente kimbundu, para fingir que as fala e ama. O grande saque institucionalizado, organizado por e para os altos responsáveis de todos os órgãos do Estado, a maioria dos quais provém do partido no poder desde a Independência, o MPLA, durou cerca de treze anos; os anos loucos a partir de 2004, dois anos após o fim da longa e vergonhosa guerra que matou os melhores filhos do país; guerra que também foi animada por egos sobredimensionados e complexos etno-neuróticos. Porque, por falta de imaginação, alguns optaram por adoptar filosofias comunistas e outros ainda outras filosofias ocidentais, mas nenhuma poderia ser boa para Angola.

O filme também mostra, no fundo, a incapacidade das elites africanas, inadequadas, de encontrarem os seus próprios caminhos de emancipação para desenvolver verdadeiramente os seus países. Vemos que em Angola o partido que governa até hoje só conservou os defeitos da União Soviética (a Rússia hoje) e de Cuba: o policiamento das populações e a arregimentação das mentes. Criou órgãos de comunicação que não são órgãos de comunicação, mas que orgulhosamente afirmam ser órgãos de comunicação. E vemos porque é que os angolanos em todo o país se tratam de “camarada” e porque aí se vive a vida nas relações de força e no quem conhece quem. Vemos também como o país copiou o racismo cubano, subtil e vicioso, misturado com o que o Freyre foi ensinar-lhe depois da Independência: o lusotropicalismo. Mas nada foi tirado da simplicidade dos cubanos e do seu gosto pelo conhecimento, antes reforçou-se o complexo de superioridade que não se baseia na ciência nem em nenhum génio. E o rigor russo, que continua a afirmar-se como outra força mundial, outra forma de contrabalançar Estados Unidos, China e Europa, não cria emulação em Angola. Simplesmente absorveu-se o gosto da sua elite pela pompa, opulência e pelo álcool, alimentados pela confiscação dos recursos do país e da economia nacional em que apenas os filiados do regime têm direito. Fabricou-se então bilionários que contam success stories que fazem dormir de pé, como Isabel dos Santos, a princesinha do regime, que ainda gosta de repetir por toda a parte uma mentira ideológica e pueril que enaltece os seus méritos como vendedora de ovos que criaram a sua extravagante fortuna. E mesmo viúva, ainda luta nas redes sociais (de minissaia e de cabelo novo!) para dizer que todos os seus bilhões são respeitáveis. Como é afro-conveniente, não sabe que na cultura africana o luto dura mais e exige um certo pudor, é o que se chama em África “ter classe”.

O enredo do filme gira em torno da transferência do poder em 2017 entre José Eduardo dos Santos e João Lourenço e os dias que se seguiram. O filme optou por não se perder nos meandros da elite do regime, que vai gastar sem contar o dinheiro dos angolanos em todo o mundo. Portanto, não fala daqueles que vão nas “boutiques” parisienses como Stefano Rossi, como grandes intelectuais, para falar mal dos portugueses e da sua cultura aos vendedores, uma contradição eminentemente gritante porque o regime criou uma caricatura de Portugal em Angola! O filme faz uma rápida sociologia do país para explicar porque é que o regime é desprovido do génio dos Kennedys, que supostamente tinham ligações com a máfia, que enviaram os seus filhos para Harvard e deram um presidente e várias outras figuras altamente formadas e bem educadas.

Os filhos da elite angolana vão para as capitais do mundo desenvolvido em busca de festas para existirem graças ao dinheiro do roubo, porque em Angola “ninguém vive do seu salário”, havia reconhecido o padrinho da maior máfia do país! E vemos como o regime criou um povo que adora beber e dançar e os seus estratagemas por trás dos decalitros de tinto que lhe oferece em bidões a cada período eleitoral para o seduzir. Vemos também a sua aproximação malsã com as elites corruptas do Brasil e de Portugal, que lhe vendem telenovelas para alienar ainda mais os angolanos, e as razões que levavam José Eduardo dos Santos a telefonar para a cantora Roberta Miranda para lhe pedir conselhos antes de tomar uma decisão política importante. Mas o mais revoltante no filme é ver como o regime criou um povo que aprendeu a agradecer por tudo e a quem pede para dar passos de dança, como pedia o Colono, a cada vez que vai cortar a fita para a inauguração do projecto mais insignificante apresentado como grandioso.

Mas o foco principal do filme é o saque dos cofres do Estado que ocorreu durante a fase de transição. Para não contar tudo aqui, vá vê-lo! Porém, já posso dizer que o Lussati, – e todos os demais da sua corporação, originários da Huíla, porque, aparentemente, as pessoas dali são verdadeiras devotas, estão prontas para morrer para honrar a sua palavra e a missão que lhes é confiada -, tem um papel extraordinariamente interessante que oscila entre o bobo da corte e o asno. É sem dúvida por causa de gente como ele que em Angola se diz que os sulanos são bons escravos. Em suma, o filme mostra como os bandidos de colarinho branco e outras entidades do regime teceram com o fio branco a teia que lhes permitiu esvaziar o país da sua substância. Vemos como contentores cheios de dólares acabaram em quintas e apartamentos por todo o país. O que é certo, depois de ver este filme, é que somos imediatamente tentados a cavar qualquer terreno na esperança de encontrar malas cheias de dólares escondidos. E o mais marcante do filme é quando entendemos porque João Lourenço declarou publicamente que tinha encontrado os cofres do Estado vazios e porque José Eduardo dos Santos, obviamente como o arquitecto de todo o plano do saque e que sabia muito bem que não tinha levado tudo, por grandeza, saiu rapidamente da sua conhecida reserva, ou melhor, do seu lendário desprezo pelos angolanos, para ir dizer, em conferência de imprensa, quanto tinha deixado nos cofres do Estado.

O filme é rocambolesco, mas não espere sair do cinema com simpatia pelo regime. O que vemos ali é monstruoso e deveria servir de exemplo para toda a humanidade, para salvar outros Estados de saques de tamanha magnitude sem precedentes. Claro, já existem pessoas que anunciaram nas redes sociais a estreia do filme. Sim, disse a algumas pessoas que estava prestes a anunciar a saída do filme e como o outro traço cultural que o regime incutiu no país é o roubo descarado das ideias de outras pessoas, uma pessoa decidiu roubar-me a cena e desvendou o enredo do filme. Pouco importa, o pior é ver que em Angola são atribuídos prémios literários aos plagiadores! Então vá logo ver este filme, actualmente está exclusivamente no cine Ngola!

Ricardo Vita é Pan-africanista, afro-optimista radicado em Paris, França. É colunista do diário Público (Portugal), cofundador do instituto République et Diversité que promove a diversidade em França e é empresário.

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