Angola: Juízes “sem condições de trabalhar”, tiram dinheiro do próprio bolso para comprar papel e tinteiro

Juízes, funcionários e advogados contam nunca terem vivido tempos de tão profunda dificuldade em trabalhar. Nos tribunais, falta de tudo, do papel ao tinteiro, do computador à impressora. Juízes e utentes compram consumíveis. Presidente da Associação dos Juízes de Angola defende uma efectiva autonomia administrativa-financeira e alerta que a corrupção tende a aumentar nos tribunais.

A falta de condições de trabalho nos tribunais do país subiu para níveis alarmantes. “Falta de tudo, desde meios de trabalho, como computadores e impressoras, gabinetes para os juízes, papéis, tinteiros e até lapiseiras, conforme o Valor Económico constatou em alguns tribunais e confirmado pelo presidente da AJA, Adalberto Gonçalves” que admite “uma tendência de aumento da corrupção” na justiça.  Audiências são adiadas recorrentemente, notificações e outras diligências não são entregues aos destinatários. Há cartórios de tribunais que demoram dois meses a receberem materiais consumíveis e, quando recebem, não é o suficiente para dar resposta ao volume de trabalho durante um mês.

No Tribunal de Comarca de Belas, na Urbanização Nova Vida, onde funciona a Sala do Civil, por exemplo, na sexta-feira, 26.11, quase ao meio-dia os utentes aguardavam na sala de espera e no exterior pelo atendimento porque não havia energia eléctrica. Confrontados com a razão de não recorrerem à fonte alternativa, um funcionário contou que não havia combustível no gerador e, ainda assim, em alguns compartimentos juízes se esforçaram a trabalhar à luz da lanterna do telemóvel.

Um outro funcionário deste tribunal, revelou, quando abordado, que na mochila que levava continham cópias de processos reproduzidos numa reprografia próxima. No gozo, atirou: “até no Palácio da cidade alta falta papel”.

A demora fazia com que vários utentes e advogados abandonassem o local mostrando aborrecimento. Alguns com processos a tramitarem lentamente por conta da falta de condições. A mesma realidade é verificada na 4ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial Dona Ana Joaquina. Na tentativa de não adiamento constante das audiências, os advogados propuseram a doação de material.

 “Os funcionários, quando consultados sobre os processos, a resposta é que não têm materiais para imprimir os despachos dos juízes. Nós propusemos oferecer ao tribunal resmas de papel, mas não aceitaram. Disseram que é uma responsabilidade do tribunal”, expõe o advogado David Sabino, achando hoje a resposta de adiamento de audiências “normal”. “O anormal é o processo andar como a lei determina”, lamenta.

Não tão diferente, funcionários da Sala Criminal do Tribunal de Comarca de Belas, no Benfica, reconhecem o aumento da dificuldade nos últimos anos. Embora por estes dias haja papel e tinteiro, explicam que foram obrigados internamente a criar um fundo de maneio para não terem de esperar por cerca de dois meses pelos consumíveis e, em consequência, paralisarem as actividades. Mesmo assim, reporta a falta de almofadas para carimbos, lapiseiras e outros materiais.

O presidente da Associação dos Juízes de Angola, Adalberto Gonçalves, aponta que a dificuldade agudizou desde a mudança da legislativa acompanhada da crise económica. Os 256 juízes e os 517 funcionários dos tribunais vivem dias angustiantes não só pela falta de materiais de trabalho, inclusive de gabinetes. Muitas vezes são os próprios juízes a comprarem com dinheiro próprio papéis, tinteiros e outros consumíveis. Noutras, os utentes aflitos acabam por contribuir para a compra.

“As nossas dificuldades tendem a aumentar, em termos de dotação orçamental para as províncias judiciais, o valor destinado quer para bens e serviços, quer para despesas de capital são insuficientes. Por outro lado, antigamente os cartórios dos tribunais podiam fazer retenção de 20% do valor destinado ao cofre da Justiça, mas esta prerrogativa foi retirada. Eram estes 20% que permitiam atenuar alguma dificuldade com material gastável”, explica o presidente da AJA.

O agravamento das condições, no entender do juiz e líder associativo, é a não efectivação, no verdadeiro sentido, da autonomia administrativa-financeira do poder judicial, ao mesmo nível, por exemplo, do poder legislativo. “Autonomia financeira não é o poder judicial fazer um orçamento e as finanças chegarem, e dizerem que só têm direito a isso, têm de explicar porque não é possível dar mais”, critica.

Contrariamente à política de bandeira do Presidente João Lourenço, de combate à corrupção, a “situação deplorável” coloca os magistrados na rota da corrupção. E Adalberto Gonçalves admite mesmo que a corrupção tende aumentar na justiça.

“A questão da morosidade sempre vai desembocar no sentimento de impunidade, transmite às pessoas que a justiça não funciona e as pessoas não têm receios, enveredam para a corrupção. Os níveis de corrupção tendem a aumentar. Por outro lado, tendo um poder judicial mais fragilizado, os operadores estarão mais susceptíveis de ceder aos aliciamentos”, deixa patente.

Juízes sem carro e casa

Em Setembro, o Presidente da República autorizou a compra de 54 apartamentos, no valor de 8 mil milhões de kwanzas, para juízes superiores e magistrados. No despacho presidencial n.º 154/21, João Lourenço argumenta que a compra visa aumentar a eficiência, eficácia e prestação de serviço com mais qualidade. Entretanto, o presidente do AJA desconhece juízes que tenham beneficiado. Relativamente a viaturas, explica que há oitos anos que os juízes da primeira instância não beneficiam. “Legalmente, os juízes têm direito a uma viatura de uso pessoal, estamos no final de 2021, a última vez em que foram distribuídas viaturas para juízes de primeira instância foi no final de 2012, a princípio de 2013. Nesta altura, ainda não tínhamos, acredito, 300 juízes. Agora o número duplicou e há juízes que nunca receberam uma viatura. Falam muito do decreto, nenhum juiz beneficiou de viatura alguma”, protesta.

Com o crescimento da inflação e a depreciação cambial, as condições sociais dos juízes “não são das melhores”. O líder associativo refere que têm um estatuto remuneratório “muito bonito”, mas, em termos concretos, não veem grande parte dos benefícios. Além do salário desajustado, não recebem outra qualquer regalia, nem têm seguro de saúde. A justificação recebida é sempre a mesma: “Não há verbas”.

 

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