Angola: Julgamento de Carlos São Vicente é imperativo para restituição dos 900 milhões USD

Em entrevista ao Expansão, o embaixador suíço fala das relações dos dois países, sobretudo a nível da cooperação judicial. Diz que na primeira resposta de Angola ao caso São Vicente a PGR mandou congelar o dinheiro e só dois meses depois um outro departamento da procuradoria diz não ter encontrado matéria criminal.

Surpreendidos, os suíços insistiram e a PGR deu o dito por não dito. A Suíça é um importante centro financeiro e África é frutífera em casos de desvios de dinheiros públicos.

Como é que os clientes africanos são vistos hoje pelo vosso sistema financeiro?

Posso dizer que a Suíça é, de facto, um centro financeiro muito importante, que gere um terço da gestão transfronteiriça de fortunas a nível mundial, estamos a falar de 3,5 biliões USD. Na Suíça, temos 248 bancos, já foram mais. Estes bancos gerem essa riqueza de uma forma muito profissional.

São reconhecidamente os mais inovadores nesta área. Nós, como Estado, implementámos legislação muito sofisticada para termos a certeza que apenas o dinheiro “limpo” vem para a Suíça.

Agora, todos estes sistemas têm as suas falhas e as pessoas que querem usar o mercado financeiro suíço para esconder o seu dinheiro ainda vão tendo algum sucesso. Mas os bancos têm obrigações de due diligence para, não só conhecer o cliente, mas também o último beneficiário [das empresas]. Se estabelecem uma relação com um cliente têm de investigar cuidadosamente com quem estão a lidar. É o que a lei obriga.

Mas haverá sempre falhas…

Claro, no meio destes 248 bancos haverá um ou outro que não cumprirá completamente as suas obrigações de due diligence. Às vezes, é só um ou dois membros do staff de um banco que podem fazer muito mal ao sector. Como podem imaginar, recolher dinheiro “sujo”, de proveniência ilícita, é actualmente um problema reputacional que pode provocar muitos danos.

A Associação de Bancos Suíços está extremamente consciente disso. Nos anos 80, quando tivemos problemas com o então presidente das Filipinas [Ferdinand Marcos], esta associação organizou os seus membros numa forma voluntária para ter a certeza que cumprem certas regras.

Porque, já na altura, a questão reputacional era algo que o sector bancário levava muito a sério. Portanto, sim há dinheiro que também vem de África, nós não queremos dinheiro que não seja “limpo” e faremos o que pudermos para termos a certeza que apenas dinheiro “limpo” vem para os bancos suíços.

Como é que é controlado o sistema financeiro na Suíça?

O dinheiro ilícito que venha para a Suíça e o banco, se se aperceber que algo não está como deveria estar, está obrigado a informar as instituições que têm como missão garantir que o sistema financeiro suíço é limpo.

Trata-se do Anti-Money Laundering Reporting Office. Aqui em Angola é o equivalente à Unidade de Informação Financeira (UIF). E temos também a nossa autoridade de supervisão. E então, se for detectada alguma situação, é iniciado um processo, porque, no fim, queremos ter a certeza que só teremos dinheiro “limpo”.

Se passado algum tempo os procedimentos mostrarem que uma certa quantidade de dinheiro não é lícita, faremos o que pudermos para restituir esse dinheiro ao país de origem.

Foi o que aconteceu com o denominado caso Carlos São Vicente e a AAA Seguros?

Neste caso particular, foi o banco que informou as autoridades competentes acerca de transacções duvidosas dentro da própria instituição bancária. Foi em Novembro de 2018 e o procurador do Ministério Público em Genebra foi informado e foi lançada uma investigação criminal.

Nesse processo, o dinheiro da AAA Seguros e de Carlos São Vicente foi congelado. E claro que isso foi comunicado às autoridades angolanas, via carta rogatória, através da embaixada.

A resposta inicial foi que não havia indícios de qualquer crime…

Não foi bem assim. Houve uma primeira resposta por parte do Serviço Nacional de Recuperação de Activos, que é liderado por Eduarda Rodrigues. Este serviço informou as autoridades suíças a 22 de Junho que lançaram uma investigação ao caso e que Angola iria providenciar assistência judicial ao caso e pediu para que os activos de São Vicente e da AAA permanecessem congelados.

Mas foi público que, entretanto, a PGR informou a Suíça que não havia crime em Angola…

Em Agosto, recebemos outra carta, de outro serviço da PGR, a informarnos que a investigação revelou que, numa primeira vista, não detectou qualquer problema. Foi surpreendente, mas depois conseguimos clarificar a situação junto do Serviço Nacional de Recuperação de Activos e parece que houve ali um erro dentro da PGR.

Um erro? Desculpe por me estar a rir…

Não faz mal (risos).

Ainda no âmbito da cooperação judicial, foi noticiado há uns três anos um acordo entre as PGR”s angolana e suíça. Muitas pessoas pensavam que, com este acordo, iríamos começar a ver processos de restituição de dinheiro a Angola que teria saído ilicitamente do país…

Devo desapontá-lo. De facto, houve discussões para um memorando de entendimento para uma cooperação judicial, mas não existe ainda…

Porquê?

Porque demora algum tempo e de qualquer forma não posso falar sobre conversações diplomáticas ainda em desenvolvimento. Quanto à assunção de que há dinheiro de angolanos na Suíça, não tenho qualquer indicação além do caso de que falámos. Mas se esse dinheiro for encontrado, tudo faremos em termos legais para o restituir a Angola.

Mas, claro, é necessária boa cooperação e começámos a estabelecer uma boa relação de trabalho com a PGR, sobretudo com o serviço competente, que é o Serviço Nacional de Recuperação de Activos, e trocamos informação regularmente sobre como os nossos serviços funcionam para conseguirmos que, no futuro, este tipo de casos possam ser desenvolvidos da melhor forma possível.

Hoje o sistema financeiro suíço está mais aberto, em termos de comunicação às autoridades judiciais de outros países…

Como eu disse, somos um centro financeiro grande e somos atractivos porque temos estabilidade política, uma moeda muito estável, e temos bancos muito capazes e bem geridos. Isso garante-nos uma reputação muito forte. Os bancos na Suíça têm 500 anos.

Joaquim José Reis

Expansão

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