Corre nos bastidores do poder uma tensão enorme entre a disposição férrea da ministra Vera Daves em controlar e disciplinar a despesa do Estado e os velhos hábitos de dispêndio de dinheiro público como se fosse areia do deserto. Se vence o ferro ou tudo se esboroa como um frágil castelo de areia é o que veremos nos próximos tempos.
Recentemente, a ministra fez a sua movimentação formal. Primeiro, em entrevista a um jornal, alertou para pressões a nível superior para pagar despesas não orçamentadas a alguns ministérios. Depois, por ofício de 7 de Dezembro de 2021, Vera Daves alerta Carvalho Neto, o secretário do presidente da República para os Assuntos Judiciais e Jurídicos, para o incumprimento reiterado das normas jurídicas contidas na Lei da Contratação Pública (LCP) a propósito da contratação pública simplificada e emergencial aprovada pelo próprio presidente da República. Este ofício tornou-se viral nas redes sociais – resta saber como foi lá parar.
Nesse documento, a ministra refere que têm sido autorizadas despesas sem consulta prévia ao Ministério das Finanças e que essas despesas, realizadas segundo a forma simplificada prevista para emergências, não obedecem à lei. Citando Vera Daves:
“[Os] Procedimentos de Contratação Pública simplificada e emergencial aprovados por despachos de Sua Excelência Titular do Poder Executivo (TPE) apresentam-se em desconformidade com a LCP, por não reunirem os pressupostos para a sua adopção, conforme estatuído na LCP.”
Dito de modo não jurídico, a ministra queixa-se de que o presidente está a autorizar gastos de dinheiro não seguindo os passos a que a lei obriga e sem critério orçamental nenhum.
E a ministra não se coíbe de apontar um culpado por este estado de coisas: o ministro de Estado e chefe da Casa Civil, Adão de Almeida, a quem envia cópia do ofício.
Segundo Vera Daves, “sobre os referidos despachos do TPE [presidente da República] recai o despacho do Ministro de Estado e Chefe da Casa Civil [Adão de Almeida] orientando a sua publicação”. É Adão de Almeida que, além de não travar, ainda manda executar os actos ilícitos.
Lembra ainda a ministra que em anos anteriores a 2018 isto não se passava assim, havendo sempre remessa de todos os despachos referentes à contratação pública ao Ministério das Finanças para aferir da legalidade e orçamentação das despesas previstas.
A ministra das Finanças não o afirma expressamente, mas resulta bem nítido do seu raciocínio e da sua invocação de Adão de Almeida que o considera directamente responsável pela desorientação e ilicitude em que se está a incorrer na contratação pública simplificada. Adão de Almeida é um jurista reputado e não pode alegar a ignorância da lei e dos seus mecanismos. Nessa medida, cai sobre os seus ombros garantir que o presidente da República, militar e historiador por formação, não jurista, não cometa erros dramáticos, como este para que a ministra alerta.
O alerta de Vera Daves não deve ser encarado como uma brincadeira ou uma mera incomodidade com alguma prepotência ou arbitrariedade de Adão de Almeida. Há três consequências muito óbvias desta tomada de posição que têm de ser tomadas em conta.
A primeira consequência é a posição do presidente da República. João Lourenço não pode ignorar o alerta da sua ministra nem manter o facilitismo jurídico que predomina no seu gabinete. Já por várias vezes escrevemos sobre as insuficiências gerais da assessoria jurídica do Presidente, aos seus vários níveis.
É tempo de impor um rigor reforçado nos assuntos jurídicos da Presidência. Ainda está fresco na memória de todos o trambolhão que foi a proposta que de lá saiu na revisão constitucional a propósito do poder judicial, que felizmente foi modificada na Assembleia Nacional.
A segunda consequência é mais grave. Não entrando em especiais discussões jurídicas, é ponto assente que no direito contratual administrativo existe nulidade do contrato quando houver nulidade do acto procedimental (cf. Direito Administrativo Angolano, Carlos Feijó e Diogo Freitas do Amaral, 2016, p. 667). Isto quer dizer que em muitos casos, dependendo das ilicitudes concretas que existam no procedimento, pode haver uma nulidade, o que gera imediatamente a nulidade do contrato final. Isto abala a segurança jurídica e a reputação do Estado, num momento que se pretende de reforma.
Finalmente, temos a consequência mais desastrosa que é dar um sinal ao Fundo Monetário Internacional (FMI), bem como aos parceiros estrangeiros que Angola quer trazer para aqui investirem de modo sustentável, de que tudo mudou para ficar na mesma. Sejamos cristalinos: isto não pode acontecer. Os sacrifícios que o povo suportou durante estes anos e a exigência financeira que foi instituída não podem redundar em dúvidas sobre procedimentos. A certificação que o FMI tem dado às políticas públicas do governo não pode ser colocada em causa desta maneira.
Isto não quer dizer que não deve haver despesa pública. Ao contrário da prática do FMI, defendemos que Angola precisa de mais despesa pública, e não menos. Contudo, esta tem de ser feita de forma transparente, legal e adequada.
O alerta contido no ofício que a ministra das Finanças endereçou ao secretário jurídico da Presidência é uma oportunidade para corrigir o que está mal.