Angola: Novo Acórdão Condenatório de José Filomeno dos Santos “Zenu”

No âmbito do processo 135/20, o pleno do Tribunal Supremo proferiu a 29 de Outubro último a decisão de recurso referente ao processo dos 500 milhões, em que tinham sido condenados José Filomeno dos Santos (5 anos de prisão), filho do antigo presidente José Eduardo dos Santos, e ainda Valter Filipe, antigo governador do Banco Central (8 anos de prisão), Jorge Gaudens Pontes Sebastião (5 anos de prisão), mencionado como associado de Filomeno, e António Samala Bule Manuel (5 anos de prisão), alto funcionário do Banco Central. O acórdão confirmou na plenitude a decisão de primeira instância.

Um comentário sobre o acórdão tem forçosamente de começar pelos aspectos formais. O acórdão tem 84 páginas e quatro assinaturas, e mais à frente constam quatro votos de vencido. Na verdade, o acórdão revela quatro votos a favor e quatro votos contra. Há um empate.

Aparentemente, o presidente do Tribunal Supremo terá utilizado um voto de qualidade para promover o desempate.

Poderá haver sérias dúvidas sobre a validade desta decisão. Na verdade, o Código do Processo Penal (CPP) a propósito da elaboração do acórdão de um julgamento exige que se forme uma maioria para a determinação da decisão (ver, por exemplo, a propósito dos tribunais colectivos, o artigo 414.º). Nessa medida, constatando-se um empate, não existe a maioria necessária e, logo, não haverá decisão. Contudo, poderá alegar-se que a lei orgânica do Tribunal Supremo confere ao presidente deste tribunal a capacidade de presidir ao Plenário – nessa atribuição estará um poder implícito de desempate ou voto de qualidade. Fica a dúvida. Competirá agora ao Tribunal Constitucional optar pela melhor interpretação face à Constituição.

Embora seja salutar haver votos de vencido e disputas intelectuais entre juízes, não deixa de causar consternação ver, num caso destes, o Tribunal Supremo partido a meio.

Voltando ao acórdão, há três aspectos que merecem atenção e colocam em causa a sua coerência substantiva.

A primeira questão liga-se à pena de Valter Filipe. Continua sem se perceber como é que este cometeu simultaneamente um crime de burla e outro de peculato, quando na verdade estes tipos criminais são duas faces da mesma moeda, sendo distintos pelo facto de o agente criminoso ser funcionário público ou não. Ora, se bem se entende o acórdão, Filipe vai condenado pelos dois crimes, sendo-lhe aplicada a pena mais elevada (8 anos de prisão), quando os juízes afirmam que “os mentores deste projecto foram os Arguidos Jorge Gaudens, José Filomeno” (p. 48). Se foram outros os mentores, não tem sentido que seja Filipe a receber a pena mais pesada.

A segunda questão liga-se à carta supostamente enviada pelo antigo presidente José Eduardo dos Santos ao tribunal e ao envolvimento deste na operação. O tribunal despacha o assunto rapidamente, invocando o artigos 226.º e 230.º do Código do Processo Penal: considera a carta ilegal e, por isso, não pode ser tomada em consideração. Não nos parece que este formalismo resolva a questão.

É claro, a partir dos vários depoimentos, que houve um envolvimento e a autorização, mesmo que informal, por parte de José Eduardo dos Santos nesta operação.

Esse envolvimento deveria ter uma de duas consequências: a instauração de um processo-crime contra o antigo presidente da República – que seria o corolário lógico destas condenações – ou a atenuação significativa da responsabilidade penal dos arguidos.

O que não é aceitável é que tudo se passe como se este processo não tivesse tido o acordo e empenho de José Eduardo dos Santos. Sendo claro que tal aconteceu, é necessário retirar as devidas consequências jurídicas.

Existe uma terceira questão que levanta perplexidade, já que o tribunal pura e simplesmente viola a lei descaradamente, justificando essa violação com um arrazoado judicial-filosófico muito interessante, mas que não pode ter lugar num acórdão.

O actual artigo 399.º do Código Penal determina que, “Quando a coisa furtada for restituída ou o prejuízo causado pelo furto inteiramente reparado, até à publicação da sentença ou do acórdão em 1.ª instância, extingue-se a responsabilidade criminal, mediante a concordância do ofendido e do arguido, sem dano ilegítimo de terceiro”. Este artigo aplica-se ao crime de burla, em virtude do artigo 423.º do Código Penal. Por sua vez, o princípio do tratamento mais favorável ao arguido ínsito no artigo 2.º do mesmo Código determina a aplicação destas normas ao caso concreto destes arguidos.

O que isto quer dizer é muito simples: se o prejuízo for reparado, não há crime. Ora, no caso concreto, tanto quanto se entende, todos os prejuízos significativos foram reparados (p. 70). Portanto, a responsabilidade criminal relativamente ao crime de burla extinguiu-se. Note-se que a lei fala em restituição ou reparação. No caso específico, uma parte foi restituída pelos arguidos e outra pelo próprio banco inglês. Seja como for, houve restituição e o prejuízo foi reparado. Portanto, o tipicismo próprio da norma exculpatória está verificado e, nesses termos, o crime de burla deve pura e simplesmente cair. Não é já possível o procedimento criminal.

Bizarramente, o Tribunal Supremo mostrou conhecer a lei, mas resolveu não a aplicar, por condenar as práticas do passado em que “o uso e a apropriação dos bens do Estado para a satisfação de interesses pessoais ou de grupo era sugestionadamente quase livre, [e] os protagonistas (…) era considerados GRANDES SENHORES, detentores de alto STATUS, possuidores de AMPLA VISÃO, sendo até passíveis de reverência, ‘merecedores’ de substanciais elogios, sendo-lhes atribuídos empolgantes epítetos como ‘GRANDE BOSS’, ‘PAI GRANDE’, etc.” (pp. 71-72).

Não deixando de concordar com a filosofia e apreciação fáctica apresentada pelos ilustres conselheiros, o certo é que estas afirmações não justificam a derrogação da lei, nem têm lugar num acórdão.

Na verdade, o Tribunal só tinha de verificar os prejuízos reparados e declarar o procedimento criminal extinto quanto ao crime de burla, eventualmente alertando o legislador para as consequências desta norma.

Temos defendido sempre que o combate à corrupção lançado pelo presidente João Lourenço deveria ter sido lançado em simultâneo com uma reforma do sistema ou o saneamento do poder judicial. O poder judicial angolano está a ter manifestas dificuldades em lidar com os grandes casos de corrupção, e deveria ter sido preparado para eles atempadamente. Aliás, Angola já tinha o exemplo de Portugal, onde a magistratura judicial e os tribunais têm sido incapazes de tratar em tempo útil os grandes casos de corrupção.

É nossa convicção que é fundamental criar uma estrutura judicial própria e legislação específica para lidar com os casos de grande corrupção, megaprocessos em que há demasiados interesses envolvidos e nos quais é necessária uma autovigilância constante e uma destreza judicial inatacável.

 

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