Angola: o MPLA precisa de se libertar das velhas amarras do passado

O Primeiro passo…
Diversas foram as vezes em que, nesta coluna, critiquei a nossa governação, por esta surgir, muitas vezes, ancorada a um “power-point”, que espera por um tempo que se afasta…

Diversas foram as vezes em que, olhando para esse tempo, senti a nossa governação capturada por uma cultura arrogante e excludente, estimulada por uma visão tão lunar que pode desembocar na sua fossilização.

Diversas foram as vezes em que alertei a quem governa, para o perigo que representa ignorar aqueles que, esmagados pelo cilindro das injustiças sociais e ensanduichados num beco de privações sem fim, recorrem hoje à rua para sobreviver, resmungar, protestar e manifestar a sua revolta.

Diversas foram as vezes em que chamei a atenção a quem governa para a rebeldia dessa geração, que recusa alinhar na via única em que se estão a confinar os nossos poderes públicos.

Diversas foram as vezes em que manifestei a minha apreensão pelo desdém projectado pela nossa governação sobre uma geração que começa a apresentar-se com uma macro-visão do mundo que não deve ser subestimada.

Diversas foram as vezes em que adverti que, absorvida pela auto-estrada da informação e do conhecimento, essa geração anda a sinalizar vontades que anunciam que, a partir de agora, nada será como dantes…

Na quarta-feira da semana passada, voltei a desafiar nesta coluna os ocupantes dos mais altos poderes públicos com este repto: “Se nas ruas há uma geração a exigir mudança, por que razão, a geração que está no poder também não faz a sua parte”?

No dia seguinte, abandonando o seu gabinete, em traje informal e solto, durante seis horas, o Presidente veio dar uma resposta parcial a algumas destas preocupações.

Apareceu sem a tradicional asfixia das gravatas, sem as vénias de cortesãos sem espinha, sem a vassalagem doentia da criadagem e sem a sofisticada etiqueta dos mordomos.

Apareceu livre da blindagem de aço de guarda-costas taciturnos para descer à terra e com um algum humor, ensaiar a primeira grande “Presidência Aberta” desde que assumiu o poder.

Foi um ensaio perfeito? Não, não foi. O Presidente esteve cem por cento perfeito? Não, não esteve. A dinâmica de interacção em actos como este recomendaria, por exemplo, que o Presidente se levantasse e que, nalguns momentos, se dirigisse nominalmente a alguns jovens com recurso a arma mais usada pelos americanos para criar empatia: “taown halls”.

Apesar disso, com alguma substância, o Presidente com este encontro, terá dado o primeiro pontapé contra o antigo “status-quo” num esforço, que, todavia, acabou por ficar manchado pelo síndrome das chefias intermédias com o vazamento, na véspera, de uma lista de jovens que se haviam habilitado à obtenção de casas, como se o direito à habitação dependesse dos ditames de quem manda no Conselho Nacional da Juventude…

Sob fogo cruzado, o Presidente aceitou dar o peito às balas para promover uma primeira grande discussão pública em torno dos problemas de um novo eleitorado juvenil.

Ao fazê-lo acabou por revelar que o modelo adoptado poderá vir a ser provavelmente o modelo que, doravante, melhor se enquadrará para ser replicado também pelos seus auxiliares, como garantia da tão esperada governação de proximidade juntos dos cidadãos.

Ao fazê-lo houve quem, vítima da desorganização e do poder do caciquismo, gostasse de ter participado e tivesse sido excluído.

Ora, ao ter apostado no jogo baixo para impedir o acesso à reunião de determinados jovens, os caciques de serviço, revelaram falta de bom senso e privaram a sociedade da possibilidade de ver exposta, em carne e osso, massa crítica provavelmente muito mais diferenciada do aquela que esteve presente no CCB – Centro de Convenções de Belas.

Ao fazê-lo, privaram o país de assistir à um debate com mais elevada densidade política e intelectual que, protagonizado por uma geração que não transporta às costas “os telhados de vidro” que comprometem e condicionam os reflexos mentais da generalidade da antiga e actual geração no poder, poderia ter proporcionado melhores e mais convincentes resultados.

Ao fazê-lo acabaram por destapar velhos fantasmas grudados na mente sebosa de gente que insiste em agarrar-se aos valores do século passado.

E, ao impedir a exposição “vis-a-vis” de questionamentos verbais temperados em alta tensão e porventura mais problemáticos, esqueceram-se de que, desdenhando deste segmento da sociedade, acabaram por prestar um mau serviço ao Presidente e à Democracia…

Contra estes fantasmas, o Presidente preferiu, no entanto, assumir o risco de “pôr a cabeça na guilhotina” e, sem termos assistido à um debate mais interventivo e plural, acabou por dar um primeiro passo para quebrar um velho tabu.

Ao fazê-lo não devemos, todavia, perder de vista que se era importante dar este primeiro passo, a partir de agora, mais importante ainda, é não ficar por esse primeiro passo…

Mesmo depois deste encontro ter destapado um nível cultural assustadoramente baixo da generalidade dos representantes dos organismos juvenis que, no CCB, pretendiam confrontá-lo. Um nível francamente sofrível.

Nada disso, porém, deve ser surpreendente. Tudo isso mais não é do que o reflexo do que, ao longo de 45 anos, não foi feito em matéria de educação e ensino público.

Mais não é do que o reflexo de um sistema de educação embalsamado com betão que, ainda em 2010, tinha no seu sub-sistema do ensino primário, professores com a 3ª classe a ministrarem aulas a alunos da 4ª classe…

Afinal, aquilo que vimos assistindo, não é senão, a todos os níveis, o reflexo do gritante défice de massa crítica das nossas elites e da anemia intelectual e política das nossas lideranças partidárias.

Sendo o primeiro e o último responsável pelo sucesso ou pelo fracasso do nosso destino próximo e há ano e meio das eleições, o momento desafia o Presidente a fazer um urgente e profundo diagnóstico sobre o estado crítico da governação. Sem grande esforço, a conclusão é obvia…

Sendo óbvia, o momento sociológico que por estes dias anda a sacudir as ruas, desafia os poderes públicos e a liderança política de João Lourenço a enfrentar duas realidades distintas.

Por um lado, a “prontidão combativa” de uma franja de jovens que estriba a sua acção na defesa e promoção dos valores da cidadania em busca de emprego e de melhores condições de vida.

Por outro lado, uma outra corrente de jovens, que hasteia uma bandeira de cunho marcadamente político, buscando a alternância do poder.

Ora, perante estes e outros reptos, o MPLA precisa de se libertar das velhas amarras do passado, mas para se libertar dessas amarras, o MPLA precisa em primeiro lugar de perguntar ao MPLA como quer chegar aos jovens que se rebelam nas ruas.

Tendo à testa de lugares-tenentes das suas estruturas e fora delas, figuras com visão política turva e um posicionamento desajustado, como a Vice-Presidente, o Secretário Geral, o Chefe da Bancada Parlamentar, a ( demitida) directora do Gabinete de Cidadania, o comentarista residente na TVZimbo, a (desaparecida) Ministra da Juventude e Desportos e outras, o MPLA não está a ser capaz de dar respostas à altura da crise…

Sujeito à um crescente e cada vez mais exigente escrutínio dos cidadãos através de debates públicos, o MPLA, “se quiser chegar lá”, não pode continuar a ser dominado pelos esteriotipos de um panfletarismo completamente deslocado da nova realidade política em Angola.

O MPLA precisa, por isso, de encetar um urgente refrescamento de cérebros, resgatando alguns quadros, que estando na prateleira, no passado já deram provas de grande competência e acumularam notável experiência em outras grandes batalhas eleitorais.

E se o Presidente não se libertar “deste” MPLA, liderando o seu refrescamento sobretudo com novas ideias, então ambos estão condenados a cair no vazio, a “terciarizar” o enfrentamento das manifestações e, quando derem por ela, será tarde demais…

João Lourenço precisa também de trazer de volta o mesmo Presidente que, no início do mandato, foi ao Mussulo e à Moçambique de férias, como um cidadão normal e que começou por se apresentar despido da carga protocolar que condiciona sempre os movimentos dos Chefes de Estado.

O mesmo Presidente que, no início do mandato, se apresentou sem o aparato bélico que, agora, tende a ressuscitar os tempos em que víamos Luanda assemelhar-se à uma cidade fantasma mergulhada em estado de sítio…

O mesmo Presidente que, tendo-se já mostrado aberto à crítica, doseando melhor a ansiedade e os impulsos, revela saber encaixar, com sentido de humor, o sarcasmo, por vezes ácido, com que tem sido caricaturada a sua imagem nas redes sociais e na imprensa.

Ora, ao lado deste Presidente os cidadãos esperam ver também governantes livres da síndroma do dirigismo e do medo de se pronunciarem abertamente sobre o lado errado da liderança, em lugar de o fazerem nas festas ou nos óbitos…

Esperam vê-lo deixar de se rodear de gente “sem chão, sem cultura, sem talento, sem liberdade e sem coragem” para dizer o que os cidadãos querem ouvir sem os adornos que os poderes gostam de usar.

Esperam vê-lo adepto de uma imprensa que não ceda a tentação para o linchamento público e para a grosseira violação do (elementar em jornalismo) princípio do contraditório como se viu na serie “O Banquete”.

Esperam vê-lo apoiado por um “think-tank” de pensadores ousados para ajudar a calibrar a sua agenda política e a imprimir ao exercício de “falar em público” prazer estético.

Esperam vê-lo ciente de que quanto mais fechado e adiado for a resolução dos problemas básicos da população mais radical tenderá a ser a reacção daqueles que, desesperados, procuram ter voz.

E de ter presente de que se os extremos se exacerbarem, a democracia terá velório agendado.

 

GUSTAVO COSTA Jornalista

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