Por serem tão importantes, ainda há pouco tempo só se falava das autarquias. Artigos de jornais, debates, abaixo-assinados, manifestações de rua…, expressando o agravamento das diferenças de opinião existentes na sociedade, e evidenciando o atraso histórico que o país deixou que se acumulasse sobre uma forma de organização do poder que teria aprofundado a nossa democracia, consolidando o Estado de Direito.
Mas cessou o ruído à volta das autarquias e das eleições autárquicas! Como se tivesse sido apenas um bruahah inócuo e sem continuidade, subordinado a objectivos imediatistas, esgrimindo argumentos que – mais do que as questões de fundo – apenas tivessem como intenção fazer barulho. “Agitar as massas”…
Entretanto, o foco foi facilmente dirigido para outras polémicas, e as autarquias ficaram temporariamente “esquecidas”. É claro que nos referimos aqui ao ruído e ao “esquecimento” mediáticos. Estimamos que as instâncias públicas que trabalham neste assunto estejam firme e despartidariamente empenhadas em prepará-las, ainda que não seja conhecido o prazo que têm para o fazer.
No fundo, há essencialmente dois cenários possíveis. Ou se consegue, de facto, aproximar as comunidades das tomadas de decisão, permitindo-se que participem activamente na governação dos seus destinos e resolvam os seus problemas ao nível local. Ou se permite que o processo das autárquicas não seja mais do que o prolongamento do longo braço dos partidos que disputam as legislativas, transformando-as num exercício com mais umas quantas marionetas, na luta pelo poder que esses partidos travam permanentemente para o acesso ao controlo do governo a nível central.
Ou seja, a escolha é fundamental: ou se dá a possibilidade de se iniciar um processo onde os cidadãos se venham a sentir “empoderados”; ou não, mantendo-os largamente desligados das decisões que afectam as suas vidas.
É claro que tudo começa com a definição sobre que poder os representantes eleitos ao nível autárquico efectivamente terão. O que é que controlarão? Com que meios? Com que pessoas? Com que orçamento? Quão transparente será o funcionamento das autoridades autárquicas? Como dar recursos à sociedade civil e aos media locais para fazer tanto o trabalho de valorização das novas estruturas, como de vigilância do seu funcionamento? A resposta a essas perguntas definirá a verdadeira importância de todo o processo… e só assim se poderá aferir o grau de autonomia que os órgãos eleitos virão a ter.
Por outro lado, e não menos importante, é o estabelecimento das regras eleitorais que deverão ser respeitadas ao nível autárquico. Qual o tipo de cenário que será permitido montar. Pois se o mesmo não tiver regras que regulem e limitem o financiamento das campanhas dos candidatos, é claro que, mais uma vez, se estará perante uma simples réplica do que se passa a nível nacional. Com uma larga probabilidade de vencer as eleições aquele que tem acesso a mais meios para fazer a sua campanha.
Defendemos que as autárquicas deveriam ser orientadas para uma solução em que os cidadãos votassem mais nas pessoas que nos partidos. Que as listas sejam feitas mais a pensar na qualidade da equipa que a nível local se predispõe a exercer a governação e no programa que defende perante os eleitores, que à bandeira partidária que acenarem. Privilegiando a candidatura de cidadãos que conheçam e estejam enraizados na região que se propõem governar (sem necessariamente estarem filiados a algum partido). Cidadãos que apresentem um curriculum– e provas dadas no terreno – em que se destaque a honestidade, a competência e a ligação à comunidade.
As autarquias não podem ser apenas uma mera substituição de forma do poder local, tal como agora está estabelecido. Terão de ser algo novo. Que, ao seu nível, e sem nunca esquecerem que fazem parte de um edifício maior – o país – estão conscientes do compromisso com os que os elegeram, que lhes permita resolver os seus problemas essenciais: saúde, educação, protecção social, segurança pública e apoio às situações de emergência. Promovendo o desenvolvimento económico local.
Introduzir esta nova forma de administração local deveria trazer ao país uma adequada alocação e aplicação dos recursos, exercendo uma efectiva fiscalização sobre quem os administra, permitindo que os cidadãos possam ter uma palavra decisiva sobre a definição das prioridades.
Será certamente necessário que os municípios tenham acesso a parte do orçamento central. E critérios muito claros devem ser definidos sobre como serão essas partes distribuídas, de forma a criar um equilíbrio nacional. É utópico pensar que cada município possa gerar recursos suficientes para o seu pleno funcionamento e bom desempenho.
Não podemos esquecer que temos um país muito heterogéneo. Quer quanto à demografia. Quer quanto à distribuição de riqueza. Quer quanto ao potencial de cada região produzir riqueza. Se não houver regras que permitam equilibrar, proporcionalmente, o acesso aos recursos existentes, permitindo que todos possam ter o necessário em função da população que têm e dos problemas que precisam de resolver, não vamos, certamente, ter os resultados esperados.
Importa pois voltar a relançar o debate (racional e inclusivo) sobre as autarquias.
* Académico angolano independente