Presidente angolano enfrenta a maior vaga de manifestações populares desde que subiu ao poder
“Uma manifestação das relações equivocadas entre o Estado e a sociedade civil.” É assim que Virgílio Fontes Pereira, destacado dirigente do MPLA, qualifica a manifestação antigovernamental que no último fim de semana culminou, em Angola, com a morte de dois ativistas.
Diante da maior vaga de protestos ocorrida no país depois de José Eduardo dos Santos ter abandonado o poder, o Presidente João Lourenço recorreu aos bons ofícios de Isaías Samakuva, antigo líder da UNITA, para denunciar a tentativa daquele partido em querer “derrubar o Governo através de uma série de manifestações destinadas a provocar o caos social”.
Na audiência, João Lourenço, segundo apurou o Expresso, pediu ainda a Samakuva para “serenar os ânimos dos dirigentes da UNITA para conter os jovens, para que não haja mais tentativas de manifestações”.
Cercado por uma revoltada legião de “novos Luatys” (referência ao ativista), uma semana depois daqueles protestos o Presidente angolano enfrenta agora as fagulhas da maior prova de fogo à sua liderança.
Instalada a ira, qualificando o combate à corrupção como uma “ilusão”, os manifestantes prometem continuar a sair à rua para exigir a satisfação das suas reivindicações e recusam ser vistos como marionetas da UNITA. Reivindicando “um novo país”, mostram-se indignados diante de uma justiça que, segundo o analista Jonoel Gonçalves, “ao não conseguir formular acusações, transformou os detidos em reféns”.
Desta vez, as labaredas não estão a ser ateadas apenas pela oposição e o cerco não está também a ser montado ou conspirado pelos chamados “inimigos externos”. Desta vez, os sinais de protesto começaram por se alicerçar na exigência da oposição em ver o Presidente marcar uma data para a realização das eleições autárquicas.
Com milhares de angolanos com a barriga vazia, a faísca poderá ter alastrado depois de o Governo, ao abrigo do estado de calamidade, ter imposto restrições que, por antecipação, impediam a realização de uma manifestação de protesto promovida por jovens revoltados com a falta de emprego e o alto custo de vida.
“Não estando em vigor o estado de emergência, de sítio ou de guerra, o direito à manifestação não pode ser limitado ou suspenso, logo estivemos perante uma clara violação da Constituição”, adverte o jurista Sérgio Raimundo.
As autoridades contrapuseram a esse desejo um decreto presidencial que proibia a concentração de mais de cinco pessoas na via pública como medida preventiva para estancar o alastramento da pandemia de covid-19. Ao entrar em vigor em menos de seis horas, esta decisão governamental foi logo vista por vários segmentos da sociedade civil e da oposição como uma clara tentativa de abortar a manifestação de protesto dos ativistas sociais.
Instalado o braço de ferro, vários grupos de jovens saíram à rua, mas a manifestação acabou por desembocar, por um lado, numa vaga de distúrbios desencadeados por alguns ativistas e, por outro, numa onda de repressão e de detenção de centenas de cidadãos por parte das forças policiais.
Do Parlamento, os manifestantes receberam o apoio da UNITA, que, segundo o seu deputado Maurílio Muliele, “não tem como não apoiar os jovens nas suas legítimas reivindicações e na defesa do direito de manifestação e de outros direitos prescritos na Constituição”.
Preocupado com o aumento da tensão política, na quarta-feira, durante a reunião do comité central do MPLA, o Presidente viu-se obrigado a reiterar o direito à liberdade de manifestação, mas não deixou de assacar responsabilidades à UNITA, acusando-a de promover o incitamento à violência e de tentar tornar o país ingovernável.
Autoridades argumentaram com a covid para impedir concentrações de jovens na via pública
“Associar à UNITA ativistas que ainda ontem apoiavam o Presidente é um erro de avaliação política grave por parte das autoridades”, avisa o sociólogo Clementino Araújo.
É esse mesmo erro de avaliação que terá levado o bispo de Caixito, D. Maurício Agostinho Camuto, a subir de tom nas críticas à governação de João Lourenço. “Ninguém deve sofrer a violência porque está a reclamar um direito”, disse o prelado.
Aos sinais de alerta contra a deterioração do nível de vida dos angolanos enviados pela Igreja Católica o Presidente respondeu com uma audiência ao arcebispo de Luanda, D. Filomeno Vieira Dias, que lhe manifestou a sua apreensão pelo rumo dos acontecimentos e apelou à pacificação dos espíritos dos angolanos.
Já em relação à detenção dos jornalistas, a condenação da atitude das forças policiais por parte de João Lourenço foi interpretada como uma resposta às crescentes críticas à tentação de o Governo exercer um controlo absoluto sobre a comunicação social pública, acusada de ser “parcial e de cometer graves omissões”.
“Isso possivelmente teria sido evitado e ter-se-ia criado previamente confiança entre todas as partes se o Presidente tivesse dado mais atenção aos sinais enviados pela sociedade e se, em vez de ter tido uma atitude reativa, tivesse enveredado por uma atitude proativa, através do diálogo com as forças políticas e sociais”, disse ao Expresso Fernando Pacheco, uma das mais influentes vozes da sociedade civil angolana.
CORRUPÇÃO
Sonangol e as transferências para a China
A descoberta de um “Fundo de Reconstrução Nacional”, responsável pela transferência por parte da Sonangol de 1,5 mil milhões de dólares para a China a favor do empresário Sam Pa, abre um novo capítulo nas investigações que a PGR está a promover em torno da presença do consórcio chinês CIF em Angola. Ouvido pela PGR, o general Hélder Vieira Dias, Kopelipa, antigo chefe da Casa Militar de José Eduardo dos Santos, revelou desconhecer a existência deste fundo e negou ter mantido qualquer vínculo com o CIF.
Com esta nova incursão, a investigação do DNIAP apurou também a existência de uma imobiliária representativa dos interesses de alguns angolanos no CIF, que declarou ter feito investimentos no valor de 689 milhões de dólares que as autoridades desconfiam estar encobertos em transferências feitas pela Sonangol a Sam Pa.
“O Estado iria pagar um investimento privado, depois de já ter pago a obra pública a Guangxi Constrution Internacional, a empresa por si contratada” — esclareceu fonte do Ministério das Finanças. Rejeitado um novo pagamento, as autoridades, no âmbito do processo crime em curso no DNIAP, confiscaram todos os bens do CIF em Angola, avaliados em mais de mil milhões de dólares.
“Podemos estar aqui diante de um crime de burla por defraudação” — explicou ao Expresso o jurista Anastácio Jeremias. Em causa está a incapacidade da parte chinesa apresentar provas documentais da realização do investimento estrangeiro. Detida em 96% pela parte chinesa, os restantes 4% da Imobiliária foram subscritos pelo antigo diretor do gabinete jurídico da Sonangol, Fernando Santos, um filho, um sobrinho e um motorista.
Texto do Expresso