Na Vila Alice, num fim de tarde em Luanda, Justino Pinto de Andrade revela ao OBSERVADOR pormenores vindos de 1972 que poderão explicar o papel de José Eduardo dos Santos em 1977. Quando veio da União Soviética, e desceu para o Congo, não estava muito agradado com que o encontrou.
Mas ficou no Bureau, era adjunto de Lúcio Lara em Brazzaville. E quando os contestatários de Lara o prenderam no quarto de banho, o papel do José Eduardo foi enigmático”.
Explica melhor: “O responsável das comunicações do MPLA era o engenheiro Fernando Castro Paiva — que depois integrou a Revolta Ativa — e tinha dois adjuntos, José Eduardo e Evaristo Quimba. Castro Paiva recebeu a notícia de que Lara estava a ser sequestrado pelos companheiros e disse a José Eduardo que comunicasse ao Presidente Neto, que estava na Tanzânia, o que estava a acontecer em Brazzaville. E parece que ele assobiou para o lado. Não agiu com a presteza que seria expectável naquela altura. Significa que José Eduardo, em princípio, devia estar, em parte, também de acordo com algumas das reivindicações feitas pelos contestatários”.
Justino Pinto de Andrade lembra ainda: “Os contestatários apresentaram depois as suas reivindicações a Neto mas ele afastou liminarmente a escorificação da direção. Segundo eles, a própria Maria Eugénia Neto [mulher de Agostinho Neto] tinha que ser afastada porque não queriam uma primeira-dama branca numa Angola independente. Exigiam que Lúcio e Ruth Lara também saíssem. E Neto reagiu: ‘Camaradas, não me revejo numa organização com esta cultura’. Até terá usado a expressão ‘pelos vistos isto agora também é a UPA [União das Populações de Angola, que esteve na origem da FNLA, o outro movimento de libertação de Angola, a par do MPLA e da UNITA], já não é mais o MPLA’”, referindo-se ao slogan do movimento ‘Um só povo uma só nação, não há raças, não há tribos’”.
O grupo de comandantes, liderado “pelo Monstro Imortal [Jacob João Caetano]”, não gostou do que ouviu. E Neto disse: “Se é assim, eu abandono a direção, escolham outro presidente”. Segundo Justino Pinto de Andrade, “a resposta deles foi: ‘Muito bem, já temos outro, o camarada José Eduardo’”. Ou seja, JES “sentou-se pela primeira vez na cadeira de presidente do MPLA em 1972” num curtíssimo período de tempo, “aquele que durou o pedido de demissão de Agostinho Neto, que depois lhes deu a volta e voltou atrás”. É por isso que Justino Pinto de Andrade diz que “José Eduardo foi presidente do MPLA duas vezes”.
Ora, continua o sobrinho de Mário Pinto de Andrade, o primeiro presidente do MPLA (ou não, nos últimos anos o partido tem dito que foi Ilídio Machado): “Alguns desses indivíduos que fizeram isto ao Lara, deram corpo depois ao 27 de maio de 1977. José Eduardo estava no Lubango, recebeu a notícia do que se passava em Luanda e ficou com a ideia de que os revoltosos tinham ganho. Reuniu a delegação do MPLA que o acompanhava e propôs que se fizesse um comunicado, uma mensagem de apoio ao camarada Nito Alves [antigo ministro do Interior de Angola, expulso do partido em 1977 e que liderou o suposto golpe de Estado falhado]. Alguns disseram que era precipitado fazer um comunicado (naquela altura) com esse teor porque as coisas ainda não estavam resolvidas nem clarificadas. E houve esta contenção”.
Só que, acrescenta o professor universitário, “isto ficou na memória de alguns e transmitiram-no à segurança de Estado”. E continua: “Numa reunião do Bureau Político do MPLA, Onambwé [Henrique Santos] que era o segundo homem da segurança de Estado — na prática era o verdadeiro líder da DISA, a antiga polícia secreta angolana —, denunciou José Eduardo e deu-lhe ordem de prisão”. Mas Agostinho Neto “travou Onambwé e disse-lhe para ter calma, porque senão em breve não havia quem pudesse estar sentado ao lado de alguém”. “Neto percebeu que se deixasse o terreno completamente livre para Onambwe seria um desastre, porque daquela mesa não escapava ninguém”, afirma.
É por causa desse passado de 1972 que “o relatório de JES foi inconclusivo, dizendo não haver evidências de fracionismo”: “Já havia uma certa cumplicidade. Não que José Eduardo fosse um homem de golpes, não, mas alguns desses indivíduos tinham estado com ele no problema de Lara”.
Também o sociólogo angolano Paulo Inglês considera “fundamental” o papel de JES, figura misteriosa, no 27 de Maio: “A postura dele é ambígua, é uma caixa de vidro embaciada que partilhava a ideologia dos nitistas e depois de escolhido para Presidente vai tentar recuperar os fiéis de Neto.”
Margarida Paredes vai em sentido contrário. No seu livro, escreve que a “lógica de recuperação e inclusão das vítimas do 27 de Maio começou durante a 1.ª República, pouco tempo depois de José Eduardo dos Santos ter sido nomeado Presidente, quando o novo estadista acabou com os fuzilamentos e libertou muitos presos políticos”.
A investigadora considera que “a política de clemência e a integração na governância do MPLA dos presos políticos do 27 de Maio levou a que hoje circule em Luanda uma nova narrativa, sugerindo que o antigo ministro das Relações Exteriores teria sido um simpatizante das teses de Nito Alves e ilibando-o de responsabilidades na repressão”. Alguns colocam-no mesmo “numa das reuniões clandestinas com o malogrado comandante”.
Em declarações ao Observador, Margarida Paredes interroga-se: “Como é que o responsável pelo relatório que investigou o ‘Fraccionismo’ teria tido simpatias pelo nitismo? Não me parece”. E acrescenta um episódio ocorrido durante a repressão do 27 de Maio (que se alongou por cerca de dois anos): “O seu melhor amigo de longa data, “Loy”, Pedro de Castro Van-Dunem, foi preso pela DISA num tanque de guerra e José Eduardo mostrou bastante coragem em mandar parar o tanque e tirá-lo de lá. Possivelmente salvou-o da morte”. Quando chegou a Presidente, nomeou-o ministro e teve várias pastas ao longos dos anos, até morrer em 1997; o seu nome foi dado a uma grande avenida de Luanda.
Ironia das ironias, em dezembro de 1977 o MPLA muda de nome no seu primeiro congresso — passa a ser MPLA-Partido do Trabalho — e assume-se oficialmente como marxista-leninista, uma das reivindicações de Nito Alves. Nessa reunião, José Eduardo dos Santos cimenta a sua posição no partido, aliado de peso no seu percurso de poder e enriquecimento dos seus: reeleito membro do Comité Central e do Bureau Político é nos dois anos seguintes secretário para a Educação, Cultura e Desportos, para a Reconstrução Nacional e para o Desenvolvimento Económico e Planificação. Até que chega a Presidente.
Para o indecifrável José Eduardo dos Santos, nada importavam as razões que faziam dele o sucessor de Neto. No discurso da tomada de posse, optou pela modéstia pragmática: “Não é uma substituição fácil. Nem me parece uma substituição possível. É apenas uma substituição necessária”.