Há uns tempos, um dos jornalistas mais atentos de Angola referia que a ministra de Estado para a Área Social teria “usurpado” as funções do vice-presidente da República, exercendo na prática muitas das atribuições de Bornito de Sousa.
Na verdade, não será bem assim, uma vez que o vice-presidente da República não tem competências próprias relevantes, salvo as de substituição presidencial. O seu poder depende daquilo que o presidente da República delegue ou não. Aliás, o próprio Bornito de Sousa participou no desenho da Constituição (CRA) que não lhe dá poderes. Se alguém quer que o vice-presidente tenha poderes, deve bater-se por uma revisão da Constituição, embora a verdade é que nestes sistemas presidencialistas de tipo norte-americano o vice-presidente tem sempre pouco ou nenhum poder. John Adams, o primeiro vice-presidente dos Estados Unidos da América escreveu a propósito da sua função: “O meu país, na sua sabedoria, concebeu para mim o cargo mais insignificante que a invenção do homem criou.”
No entanto, há uma área em que em que de facto poderá estar a ocorrer um fenómeno de usurpação de competências, ou mesmo de criação de um poder judicial paralelo.
Como se sabe, o poder judicial é um dos três poderes constitucionais, a par do poder executivo e legislativo. Ao contrário destes, é um poder disperso, plural e sem um sentido único. Enquanto o poder executivo tem um chefe, e o poder legislativo delibera univocamente com uma maioria, o poder judicial toma tantas decisões quantos os juízes nos tribunais, não tendo um chefe, nem sequer uma estrutura que dê instruções sobre as suas decisões. Como está bem expresso na CRA, os “juízes são independentes no exercício das suas funções e apenas devem obediência à Constituição e à lei” (artigo 179.º, nº 1 da CRA). O órgão superior de gestão e disciplina da magistratura judicial é o Conselho Superior da Magistratura Judicial (artigo 184.º). A CRA não prevê mais órgãos para o poder judicial. Foi por isso que anotámos com surpresa a existência de uma designada Comissão Nacional de Coordenação Judicial.
A surpresa passou a profunda preocupação quando deparámos com os despachos n.º 926/ 21 e n.º 927/21, ambos de 8 de Dezembro, emitidos pelo presidente dessa Comissão, o também presidente do Tribunal Supremo e do Conselho Superior da Magistratura Judicial, Joel Leonardo. Embora publicados em Dezembro último, os despachos são de Maio de 2021 e criam uma estrutura mastodôntica inexplicável para esta Comissão. Vejamos.
O primeiro dos despachos torna os ministros da Justiça e do Interior, além do comandante da Polícia Nacional, membros permanentes desta Comissão. Soa demasiado bizarro que uma Comissão de Coordenação Judicial tenha membros permanentes do Executivo no seu seio. Mesmo chamando-lhes “convidados permanentes”, a verdade é que estes ministros estarão sempre presentes no dito órgão do poder judicial, o que parece ser um atropelo descarado à separação de poderes. A esta bizarria junta-se outra: os ministros aceitaram este convite permanente? O presidente da República foi informado de que o presidente do Tribunal Supremo “destacou” os seus ministros?
No mínimo, as liturgias simbólicas do poder constitucional não estão a ser respeitadas. A esta inclusão ministerial acresce a criação de vários departamentos, também permanentes, da referida Comissão. São quatro chamados Grupos Técnicos Permanentes: Cerimonial e Comunicação; Organização, Logística e Serviços Gerais; Redacção e Documentação; Secretariada Administrativo. Também é criada uma Comissão Permanente da Comissão, bem como um Secretariado Executivo Integrado.
Adicionalmente, o despacho seguinte confere a devida densificação à ampla estrutura desenhada por Joel Leonardo. O mesmo Joel Leonardo nomeia 18 membros do mencionado Secretariado Executivo em representação dos vários órgãos que compõem ou são “convidados permanentes” da Comissão. Leonardo nomeia representantes da Procuradoria-Geral da República, da Ordem dos Advogados, da Provedoria de Justiça, bem como do Ministério da Justiça e do Interior. Embora ressalve que ouviu os membros da Comissão antes de proceder às nomeações, é totalmente inusitado ver o presidente do Tribunal Supremo a nomear, por acto unilateral, representantes do poder executivo e de associações públicas como a Ordem dos Advogados. É evidente que cada órgão deveria indicar formalmente os seus representantes, em vez de estes serem nomeados pelo presidente do Supremo.
Finalmente, o presidente do Supremo decide que os membros da Comissão Permanente e do Secretariado Executivo têm direito a uma remuneração, conforme tabela que anexa, mais regalias a estipular.
Tudo isto é absurdamente surreal.
O que estes despachos demonstram é que se está a criar uma estrutura própria – fora de qualquer controlo – de coordenação do poder judicial.
Recordemos que a lei atribui à Comissão Coordenadora a missão de apreciar a organização e o funcionamento dos tribunais judiciais, bem como a qualidade e a eficiência dos serviços prestados por estes prestados. Quer isto dizer que, no topo das conclusões acerca do bom funcionamento dos tribunais, vai estar uma comissão composta por membros do poder judicial e por ministros (poder executivo).
Esta estrutura e o que se pretende que ela faça levanta dois tipos de problemas. O primeiro é constitucional. Não pode existir um órgão que sirva de campo comum de actuação dos vários poderes (judicial e executivo) a controlar a eficácia dos tribunais. A eficácia dos tribunais, de acordo com a Constituição, só pode ser averiguada pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial. Tudo o mais são invenções espúrias que desvirtuam a atomização do poder judicial e as suas garantias de independência e imparcialidade. Temos aqui um órgão extraconstitucional, inventado do nada, que rapidamente reúne um secretariado com 18 pessoas e uma imensidão de pessoas debaixo da batuta de Joel Leonardo. O presidente do Supremo vai comandar os ministros da Justiça e do Interior naquilo que tange aos tribunais? É uma espécie de substituto do presidente da República para a Justiça? Aqui sim, parece haver uma substituição das funções do vice-presidente pelo presidente do Tribunal Supremo. Tudo isto é demasiado esquisito.
O segundo problema que esta estrutura delineada por Joel Leonardo levanta prende-se com as finanças públicas. Como se explica que em tempos de austeridade se instalem órgãos com uma imensidão de pessoas a ganhar salários e regalias, repetindo o que outros fazem? Onde está a ministra das Finanças para travar estas desventuras? Todo este movimento de criação de uma Comissão de Coordenação do poder judicial parece ser disfuncional: é inconstitucional, sobrepõe-se às funções que outros órgãos desempenham e custa dinheiro. Pior do que tudo, parece ser uma tentativa de criar um poder sub-reptício e paralelo sobre o poder judicial.