EUA: A aposta de Espanha em África “não deixa de ser uma bofetada de luva branca” a Portugal

Espanha elegeu o continente africano como uma prioridade e, na sequência, Pedro Sánchez inicia hoje uma visita oficial a Angola. Antigo MNE diz que esta aposta “belisca” os interesses nacionais e que a presidência portuguesa da UE se deixou ficar para trás.

África deixou de estar na primeira linha de prioridades da política externa portuguesa e isso vai ter um preço. Antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, antigo embaixador em Madrid, António Martins da Cruz olha com preocupação para a anunciada aposta de Espanha no continente africano, agora concretizada com a visita oficial de Pedro Sánchez a Angola. O diplomata estranha o timing, em plena presidência portuguesa da União Europeia. E não tem dúvidas de que o país vizinho está a apontar à África lusófona.

O primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, inicia esta quarta-feira uma visita de Estado a Angola, depois de Espanha ter apontado África como uma das prioridades da sua política externa. O que é que explica este interesse de Espanha, que sempre teve uma política externa muito centrada na América do sul, no continente africano?
Deixe-me relembrar uma história. Quando eu era embaixador em Madrid, tive uma reunião com o ministro dos Negócios Estrangeiros, creio que em 2002. E ele disse-me que a Espanha também tinha tido colónias em África porque Angola e Moçambique tinham sido colónias espanholas durante o regime dos Filipes, de 1580 a 1640. Ao que eu lhe disse “desculpe, mas deve estar enganado, porque o que havia era dois reinos com o mesmo rei, e a África, a Índia, ou o Brasil, nunca foram espanholas”. O que quero dizer é que isto é uma mentalidade que existe em Espanha. Porquê este interesse agora? Tem a ver com uma revisão que está a ser feita da política externa espanhola e em que as empresas, porventura tendo esgotado as oportunidades na América Latina, se voltaram mais para África. O que é de estranhar é que isto seja feito durante a presidência portuguesa da União Europeia (UE).

É de estranhar? Porquê?
Eu partiria do princípio que teria havido alguma coordenação com o governo espanhol sobre este tema. Mas o que vemos é que, há algumas semanas, foi aprovada a estratégia espanhola para África, e imediatamente a seguir o chefe do governo decide fazer uma viagem a Angola e ao Senegal. Isto quando a presidência portuguesa da UE, que tentou primeiro bater os alemães numa cimeira entre a Europa e a África, e não conseguiu, não vai fazer nenhuma cimeira com África. Por exemplo, a França vai fazer uma cimeira, julgo que no final de junho, com os países africanos… No que diz respeito a África parece-me que a presidência portuguesa da UE está a ficar pelo caminho. E a Espanha, nitidamente, está a somar pontos.

Portugal está a perder terreno?
Se olharmos para o que se passa, por exemplo, em Angola, as empresas portuguesas estão cada vez mais a sair. Por várias razões, por razões económicas, sobretudo, mas também por razões financeiras. Porquê? Porque a banca portuguesa não tem créditos abertos para as empresas que estão em Angola e o próprio sistema de crédito público não está a funcionar como devia. Ao passo que em Espanha estão a aumentar os plafonds de crédito concretamente para Angola e eu noto que há cada vez mais empresas a apresentar projetos em Angola, na construção de hospitais, no tratamento do lixo, nas áreas da Defesa…

A Espanha já disse que quer ser uma voz liderante na União Europeia em relação a África.
Exatamente, foi o que disse a ministra dos Negócios Estrangeiros. E por isso é que aprovou a estratégia espanhola em relação a África. Isto não deixa de ser… Sabendo os espanhóis que a prioridade da política externa portuguesa fora da Europa é África, isto não deixa de ser uma bofetada de luva branca.

Mas estava a dizer que o timing escolhido também quer dizer alguma coisa…
O timing em política quer sempre dizer alguma coisa, sobretudo em política externa. Não sei se houve ou não coordenação com a Espanha sobre este assunto, mas considero que a opinião pública não pode deixar de estranhar que a Espanha entre nas nossas prioridades de política externa durante a presidência portuguesa, num tema que para Portugal devia ser essencial e que afinal, ou não faz parte dos calendários ou, se faz… Tanto quanto sei não está prevista nenhuma viagem do primeiro-ministro português, e mesmo do Presidente, a um dos países da CPLP, Angola, Moçambique ou Cabo Verde, sobretudo. Isso não pode deixar de ter uma leitura significativa.

Esse é outro aspeto da questão. Sánchez começa a visita por Angola e, entre as prioridades definidas por Espanha, está também Moçambique. Parece haver aqui uma aposta na África lusófona…
Exatamente. A Espanha, tirando o caso mal resolvido da Guiné Equatorial, não tem um espaço estratégico ou geoeconómico em África. Portanto, fez uma análise e só podia haver três espaços: o inglês, o francês ou o português. Foi pelo elo mais fraco: o espaço português.

O que é que isso representa para Portugal? Uma ameaça?
Não lhe chamaria uma ameaça, mas a Espanha está a beliscar interesses primordiais para a política externa portuguesa. Enquanto para Espanha a América Latina – depois do Mediterrâneo – são os grandes interesses da política externa fora da Europa, para nós é claramente a África. Portanto, ao vermos a Espanha avançar desta maneira numa altura significativa para a política externa portuguesa, que é a presidência da UE, que só temos de dez em dez anos, não pode deixar de ser uma beliscadela.

Um desafio?
É mais que um desafio, é uma pedra no sapato.

E Espanha tem condições para assumir essa voz liderante com África no espaço da UE?
Tem seguramente. Por várias razões. Primeiro porque, com o brexit, a Espanha passou a ser um dos quatro países mais importantes da UE. Segundo porque tem dimensão na sua política externa. Terceiro porque tem uma economia global, com grandes empresas e grandes bancos que estão em todos os sítios no mundo, porque não em África? Se em Portugal os principais bancos são espanhóis, se há cada vez mais empresas espanholas, na construção, na tecnologia, nas zonas importantes da economia, porque é que não hão de ir para África? E quarto porque a Espanha, de há uns anos para cá, está a ter uma presença constante e muito acentuada na chamada África portuguesa – em Cabo Verde, em Angola e em Moçambique. Em Cabo Verde, uma das ilhas é praticamente espanhola, todos os hotéis são espanhóis, foi a Espanha que reconstruiu o aeroporto. Em Angola, as empresas espanholas estão presentes e a banca espanhola dá créditos às empresas para entrarem lá. Coisa que a banca portuguesa não faz e a COSEC faz ainda menos. Em Moçambique a Espanha está a olhar para aquilo que se passa no gás natural. A Repsol ainda não avançou, mas segundo me dizem vai avançar agora em Angola. Portanto, as empresas espanholas, que têm uma dimensão universal, estão atentas áquilo que podem chamar o espaço soft de África, o espaço onde podem entrar, que é o espaço da língua portuguesa.

Porque é que é mais fácil às empresas espanholas entrar nesse espaço?
Uma das razões é porque no espaço da língua inglesa e francesa têm competidores grandes. A Inglaterra, com o brexit, está a virar-se cada vez mais para a Ásia e para África – e vamos ver consequências disso em Angola e Moçambique, seguramente. E a França também – em Moçambique a Total é hoje o primeiro investidor no gás e, em Angola, é a primeira empresa no petróleo.

Portanto, estamos no meio de uma luta de interesses de gigantes.
Seguramente. E Portugal continua a olhar para o umbigo de Bruxelas.

Diria que há aqui falta de preocupação, e de ação, das autoridades portuguesas?
De preocupação não diria, de ação seguramente. Não vimos, nos últimos tempos, a África ser uma prioridade da política externa. Podíamos ter aproveitado a nossa presidência com aquilo que são as prioridades da nossa política externa. Em relação a África não vimos nada, só tentativas que depois não se concretizaram. Até a ajuda a Moçambique ficou pelas boas intenções.

Portanto, Portugal está a desguarnecer este flanco?
Sim, mas isto não vem de agora. Desde há alguns anos para cá o que vemos é que África deixou de estar na primeira linha das preocupações da política externa.

Desde quando? De que período é que estamos a falar?
Concretamente dos governos de Pedro Passos Coelho e António Costa. Obcecados, um com a troika, o outro com a recuperação, primeiro privilegiaram o diálogo com a Alemanha, depois privilegiaram o diálogo com Bruxelas. Nós padecemos de umbiguismo em relação a Bruxelas. É muito importante para Portugal, mas nós somos um país com uma política externa universal, da qual nos orgulhamos muito, e estamos a perder a universalidade. Isso é um erro de que nos vamos arrepender daqui a uns anos, estamos a perder interlocutores em África. Hoje em dia Portugal não tem os interlocutores em África que tinha há 15 ou há 20 anos. Não tem. Nem no aspeto político, nem no aspeto empresarial. Repare: eu não estou contra que se olhe para Bruxelas, é uma prioridade para Portugal desde 1986. A Europa para nós é a prioridade. Não pode é ser a única e parece que agora é a única.

Um exemplo?
Nós vamos ter uma cimeira com a Índia no Porto. Muito bem, a Índia é hoje em dia um país importantíssimo e com qual temos de falar. Agora, não nos sentimos confortáveis para fazer, durante a presidência portuguesa, uma cimeira com os países da CPLP? Mas porquê? O presidente João Lourenço não vinha a Lisboa? Ou o Presidente Nyusi? Ou o presidente Bolsonaro? E porque é que a CPLP agora é por Zoom? Eu sei que há limitações sanitárias, mas se fazemos uma cimeira com a Índia, porque é que não fazemos com os nossos irmãos da CPLP? Porquê? Têm medo de tirar uma fotografia com o Bolsonaro? A política externa não é uma questão de foto oportunity, não são oportunidades de fotografia, a política externa vai para além disso.

Susete Francisco 

susete.francisco@dn.pt

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