Major angolano Pedro Lussati revela aos deputados que Miala lhe disse que “o seu dinheiro” ficou com o Presidente João Lourenço

O Major angolano Pedro Lussati das Forças Armadas Angolanas (FAA) Pedro Lussati acusou, na denúncia enviada à Assembleia Nacional, o general Fernando Garcia Miala de o ter mantido, durante 44 dias, em cárcere privado, na sequência de várias tentativas de assassinato, para ficar com mais de 100 milhões de dólares norte-americanos seus — dinheiro este que o chefe do Serviço de Inteligência e Segurança de Estado (SINSE) lhe teria dito que ficou com o Presidente João Lourenço.

Quando, a 13 de Maio de 2021, acabou sequestrado à porta do condomínio Imoluanda, sua residência oficial, sita em Talatona, o major das FAA estava longe de adivinhar que o seu destino passaria por aparecer nos ecrãs da Televisão Pública de Angola (TPA) como o ‘cabecilha’ do mega-esquema de corrupção da extinta Casa de Segurança do Presidente da República, que acabou conhecido como ‘Operação Caranguejo’.

Volvidos dois anos desde a descoberta do escandaloso caso de corrupção e do respectivo início do processo judicial pelo qual acabou condenado a 14 anos de prisão em primeira instância, Pedro Lussati decidiu contar aquilo que mais ninguém viu e que só ele sabia:

Que o envolvimento do seu nome na ‘Operação Caranguejo’ não passou de um ardil supostamente inventado pelo general Fernando Garcia Miala, para mascarar uma mentira e permitir que o chefe da Inteligência angolana lhe conseguisse roubar activos monetários que o major das FAA afirma terem sido resultado da sua actuação como empresário no ramo do comércio internacional, investimentos financeiros e imobiliários.

Na denúncia que fez chegar à presidente da Assembleia Nacional e aos grupos parlamentares do MPLA, UNITA e Misto (FNLA e PRS) — documento ao qual o !STO É NOTÍCIA teve acesso exclusivo —, o major das FAA descreve um quadro de inúmeros ‘atropelos’ à Constituição e à lei, que o levam a recusar a aceitar de que tenha sido alvo de uma detenção, tal como foi anunciada, ou mesmo de que os seus bens tenham sido apreendidos pelo Estado.

“O teu dinheiro ficou com o Presidente”

O mais famoso dos majores das FAA em Angola não tem dúvidas de que foi e é “vítima de vários crimes contra a liberdade das pessoas e contra a realização da justiça, nomeadamente sequestro, coacção grave, tomada de refém, obstrução à justiça, prevaricação, denúncia caluniosa, tortura e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, praticados com a intenção de realizar finalidades de natureza política”, todos eles a mando, supostamente, do general Miala.

“Convém enfatizar que o denunciante esteve sob tortura em cárcere privado durante 44 dias, de 13 de Maio até 27 de Junho de 2021. Neste período, o próprio ministro FGM [Fernando Garcia Miala] dirigiu algumas das sessões de tortura. ‘Por que me estão a sequestrar e torturar?’, perguntava amiúde o denunciante. — Estamos a cumprir ordens… Foi o Presidente João Lourenço que nos mandou fazer isso. —, respondiam amiúde os seus sequestradores…”, lê-se na denúncia que fez chegar aos parlamentares, com uma revelação bombástica:

“O teu dinheiro ficou com o Presidente, as tuas roupas já não hás-de encontrar”, dizia o ministro feito algoz”.

O dinheiro roubado

Segundo Lussati, o dinheiro a que referia o general Miala enquanto o torturava seriam os 70 dos 80 milhões de dólares norte-americanos roubados em quatro dos seus imóveis em Luanda, e não revelados à imprensa na reportagem exibida pela TPA, e mais a mercadoria — avaliada em 40 milhões de dólares norte-americanos — composta por objectos de luxo, recebidos à consignação, e que estavam armazenados num apartamento em Odivelas, Portugal, de onde foram roubados, por indivíduos do SINSE.

“Importa realçar que, não obstante a presença dos referidos documentos fraudulentos nos autos do processo judicial, não se pode falar em ‘detenção’, nem em ‘apreensão de bens’, e muito menos em ‘prisão preventiva’, porque o Estado de Direito não sequestra pessoas e, como agravante, em cárceres privados como já referido, para, mais tarde, emitir mandados de detenção, ou prisão, ou de apreensão de bens, só para legitimar o sequestro e o roubo”, escreve na denúncia.

Dados incongruentes

A alusão, quer à detenção, quer à apreensão de bens, assim como ao mandado de detenção e ao mandado de prisão preventiva, está relacionada com o facto dos timings e a narrativa não baterem certo.

O major das FAA aponta como primeira incongruência do processo judicial e da ‘trama’ exibida na televisão pública o facto de o assalto ao apartamento de Odivelas ter ocorrido a 14 de Fevereiro de 2021 e em Luanda a 10 de Maio de 2021, isto é, num intervalo de três meses e meio, por um lado, e, por outro, três dias antes de ter sido sequestrado à porta do condomínio Imoluanda, onde reside, e não quando supostamente tentava esgueirar-se do país com malas cheias de dólares norte-americanos, como fez jus a reportagem.

“Depois do roubo, e não tendo alcançado na íntegra os seus objectivos, o ministro FGM voltou a violar a Constituição e a atentar gravemente contra o Estado democrático de direito, abusando dos poderes que a lei lhe confere: procurou assassinar o denunciante de várias formas, na rua e em cárceres privados. Apenas por milagre, o denunciante sobreviveu e teve já a oportunidade de denunciar esses actos todos ao senhor ministro do Interior, quando este o visitou no Hospital Penitenciário de São Paulo, por ocasião do Natal, em Dezembro de 2022”, relata o documento.

Substância química injectada

O major conta ainda que, no dia 16 de Maio de 2021, Fernando Garcia Miala lhe teria mandado amordaçar, encapuzar e vestir com uma bata branca, tendo sido depois à clínica Girassol onde seria supostamente assassinado, através de uma substância química que lhe teria sido administrada por injecção.

No documento, Lussati escreve que “vive à sorte, pois é de se esperar que, a qualquer altura, a substância intra-venosa produza os seus efeitos”.

O major relata ainda que, na clínica Girassol, a “equipa de criminosos”, expressão usada pelo denunciante, entrou pelas portas de arrumos, sem registos, e sem passar pela recepção da unidade de saúde.

Estando já no interior de uma sala, prossegue a denúncia — que teria sido preparada e guarnecida para o alegado crime —, o major dirigiu-se à senhora de bata branca que estava incumbida de administrar a morte, perguntando-lhe: “A minha família está lá fora e sabe que estás aqui?”.

Sem lhe responder, Lussati descreve que a senhora se limitou a administrar a substância e fugiu. Os guardas da clínica, segundo Pedro Lussati, “ficaram desorientados, falaram com os seus mandantes, via rádio, e logo a seguir abandonaram o local. E, em seguida, voltaram a levá-lo novamente para o cárcere privado”.

Salvo pela empatia e solidariedade

“Kota, fizeste o quê então?”, “A ordem que nos deram é para te matar, mas você parece boa pessoa…”, “vamos te ajudar”, foram algumas frases que o major das FAA conseguiu reter dos guardas do cárcere privado, que, ao fim de alguns dias, acabaram por mostrar alguma empatia e solidariedade perante a sua dor.

“Os jovens guardas, com ares de meliantes assassinos, informaram ao denunciante que publicaram as suas imagens nas redes sociais, informando ao público que corria perigo de vida. De facto, as imagens difundidas pelas redes sociais chegaram aos familiares do denunciante, que passaram a procurar a vítima nas instituições penitenciárias e nas instalações oficiais da Polícia Criminal. Sem sucesso, pois alegavam que não o conheciam, não tinham dele nenhum registo!”, lê-se na denúncia.

No documento enviado aos parlamentares, Pedro Lussati comenta que, dos episódios vividos no cárcere privado, se tornou notório e evidente que Fernando Garcia Miala, no exercício das suas competências, instrumentaliza criminosos e faz recurso a ‘esquadrões da morte’ para executar pessoas, em violação à Constituição e à lei.

“Também ficou claro, que o ministro FGM, auxiliar do titular do Poder Executivo, no exercício das suas competências, actua de forma arbitrária, à margem da lei, pelo que é imperativo que se assegure a fiscalização parlamentar da legalidade dos seus actos, nos termos da lei”.

Actuação do SINSE versus Constituição

O documento do major das FAA refere que o SINSE, sendo um órgão constitucional e uma unidade orçamental da Administração Pública — que, nos termos do artigo 2.º do seu estatuto orgânico, é dirigido “por um chefe de serviço equiparado a ministro para efeitos protocolares, remuneratórios, e de imunidades”, deve subordinar-se à Constituição e estar sujeito à fiscalização parlamentar, nos termos da lei.

“Recorrer ao sequestro, assaltos, tentativas de assassinato e à violência em cárcere privado, em nome do Estado e utilizando instituições do Estado, com o propósito de coagir alguém a proceder à disposição de seu património, a fim de obter para si ou para terceiros vantagem económica que não lhe é devida, incriminando depois o inocente, o ministro FGM viola a Constituição e indicia ter cometido os crimes de sequestro, roubo, extorsão, coacção grave, denúncia caluniosa, prevaricação e obstrução à justiça, previstos e puníveis nos termos do Código Penal Angolano”, lê-se na denúncia.

Lussati diz ser seu entendimento que a suposta conduta do general Miala fornece ao Parlamento indícios suficientes e necessários para determinar a eventual responsabilidade do Estado angolano nas acções praticadas pelo SINSE, de que resultaram violações graves dos direitos, liberdades e garantias contra si, assim como prejuízos para si e para terceiros a ele associados.

Em relação ao facto de lhe ter sido dito que o seu dinheiro ficou com o Presidente João Lourenço, o major considera tratar-se de alegações que indiciam ofensa ao direito ao bom nome, reputação e imagem do Presidente da República.

(Continua na parte III)

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