Porque é que a União Europeia e os EUA não vendem os “bens congelados” aos oligarcas e ao estado russo para apoiar a Ucrânia?

A ambição de vender os bens confiscados ao estado e aos oligarcas russos parece esbarrar num pequeno pormenor: A lei internacional.

Na sequência das sanções implementadas pela União Europeia (UE) e pelos EUA à Rússia após a invasão do Kremlin à Ucrânia, o estado russo e vários oligarcas próximos de Vladimir Putin, “o Presidente da Rússia, têm visto os seus bens congelados um pouco por todo o mundo. Nada tem escapado às autoridades ocidentais: iates de luxo nas Caraíbas, mansões extravagantes na costa italiana, quadros de Diego Rivera e Pyotr Konchalovsky ou contas bancárias com milhões de euros”.

Tendo em conta a improbabilidade de um envolvimento direto no teatro de guerra da Ucrânia, as instituições europeias e norte-americanas têm tratado estas operações como autênticas vitórias militares – mais um passo na campanha económica e financeira que visa estrangular a economia russa e forçar Putin a ordenar a retirada das suas tropas. Devido sobretudo à opulência em torno dos bens congelados, e também ao exercício constante de autopromoção através de comunicados e conferências de imprensa oficiais, as imagens que acompanham as apreensões têm sido muito partilhadas pelos órgãos de comunicação e entre os utilizadores nas redes sociais.

Segundo algumas estimativas, pelo menos 300 mil milhões de euros em reservas monetárias do Banco da Rússia (banco central) já estão congeladas a nível global. Por sua vez, “a UE anunciou que a equipa de trabalho que criou especificamente para estas atividades têm em sua posse 29 mil milhões de euros em bens. Já o Reino Unido, para além de ter congelado 500 mil milhões de euros de bancos e empresas detidas pelo estado russo, ou por empresários com ligações à cúpula política de Moscovo, também confiscou 150 mil milhões de bens detidos por cidadãos privados, quase todos pertencentes a oligarcas russos e às suas famílias”.

Alguns dos últimos casos incluem o iate Scheherazade, que foi confiscado dia 7 pela polícia italiana num estaleiro da Marina de Carrara (centro), e uma das propriedades do oligarca Roman Abramovich, esta localizada mesmo em Portugal, na Quinta do Lago, e avaliada em 10 milhões de euros. Por sua vez, “o Scheherazade está avaliado em 650 milhões e supostamente pertence ao próprio Vladimir Putin. Com estes números em perspetiva, levanta-se a questão: porque é que estes bens não são vendidos para ajudar o povo e o exército ucranianos? Essa ambição parece esbarrar num ligeiro obstáculo: a lei internacional”.

Obstáculos legais

Grande parte dos especialistas legais concordam que, embora a Ucrânia possa vir eventualmente a beneficiar das verbas adquiridas pela venda dos bens congelados, esse processo vai ser longo e extremamente complicado.

Para que os governos possam confiscar de forma permanente os bens em questão, necessitam de provar em tribunal que estes foram obtidos na sequência de um crime ou através de operações de lavagem de dinheiro, o que poderá levar bastante tempo, especialmente se os lesados em cada processo se mostrarem disponíveis para contestar as decisões judiciais.

Outra possível alternativa passaria por serem as próprias vítimas, neste caso os cidadãos e o governo da Ucrânia, a processar os oligarcas e dirigentes políticos russos de modo a receber alguns dos bens congelados como compensação. Segundo Ian Bond, diretor de política externa no ‘think tank’ Centre of European Reform (CER), citado pela agência Euronews, esta estratégia poderia resultar se os bens compreendidos no processo fossem detidos originalmente pelo estado russo, e não por cidadãos privados, pois, nesse caso, seria mais difícil estabelecer uma ligação direta e precisa entre os vários bens individuais e os danos causados pela invasão da Ucrânia.

Segundo Bond, uma condenação oficial do Tribunal Penal Internacional (TPI) a acusar a Rússia de “crimes contra a humanidade ou genocídio” serviria certamente como um catalisador legal, permitindo agilizar os vários processos ao oferecer ao estado ucraniano, e aos seus cidadãos, “um julgamento a dizer que o estado russo lhes causou um dano – o dano mais grave que um estado pode causar”. No entanto, uma sentença do TPI neste sentido não parece provável num futuro próximo, e não se antevê, por isso, uma resolução célere a muitos destes casos.

Para além destes obstáculos legais, as limitações inscritas nas várias jurisdições nacionais também não estão do lado dos que defendem usar os iates confiscados para compensar o povo ucraniano. Paul B. Stephan, professor de direito na Universidade de Virginia, nos EUA, escreveu um texto sobre esta matéria no site The Conversation cujo título é extraordinariamente direto e esclarecedor: “Não, [Joe] Biden não pode simplesmente vender iates russos confiscados e ativos do banco central para ajudar a Ucrânia – o direito internacional e a Constituição dos EUA proíbem-no”.

Como justificação, Stephan refere o chamado “International Economic Emergency Powers Act”, um projeto de lei aprovado pelo Congresso dos EUA em 1977 que permite ao presidente assumir controlo sobre largos setores da economia norte-americana se este declarar um “estado de emergência nacional”. Mesmo que Biden acionasse o estado de emergência, o ato de 1977 não lhe permitiria vender os bens confiscados ao estado russo, apenas congelá-los. Algum tempo depois, após o ataque de 11 de Setembro, o Congresso aprovou outra proposta que abria uma exceção às limitações consagradas no ato de 1977 caso os EUA estivessem oficialmente em guerra, o que não se verifica hoje”.

Joe Biden, presidente dos EUA, faz o que pode: em março, anunciou a criação de uma célula dedicada a perseguir judicialmente “oligarcas russos corruptos” e todos aqueles que violaram as sanções impostas por Washington a Moscovo, e em maio declarou a intenção de acelerar o procedimento administrativo através do qual o Departamento do Tesouro localiza e congela os bens russos. Mas ainda não parece mais próximo da resolução este puzzle judicial.

No caso da União Europeia (UE), as perspetivas também não são animadoras. Numa entrevista com a agência noticiosa ucraniana Interfax-Ukraine, Charles Michel, o presidente do Conselho expressou publicamente a “extrema importância” de “não só congelar os bens” russos, mas também “torna-los disponíveis para a reconstrução da Ucrânia”, acrescentando que a sua equipa estava a procurar uma “solução legal no âmbito dos princípios do estado de direito europeu” que facilite a venda dos bens confiscados a pessoas que estejam sancionadas pela UE.

A solução não parece óbvia: embora a EU aplique sanções em bloco, a sua implementação legal é feita a nível nacional, tendo em conta as jurisdições dos vários estados-membros. Por isso, qualquer tentativa dos governos europeus de vender bens russos está sujeita a uma resposta judicial feroz e descentralizada, estendendo, dessa forma, todo o processo.

 

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