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Portugal: JES: O irmão que vendia açúcar, as jogadas de milhões e as piscinas cheias de champanhe

Até 1992, José Eduardo dos Santos não privilegiava a família, assegura uma amiga de duas das suas mulheres. E terá sido só apartir da União com a Ana Paula dos Santos, em 1991, que a vida de José Eduardo dos Santos se começou a encher de luxos. 

Já o irmão era Presidente “quando Avelino ainda vendia bebidas e açúcar ao quilo numa cantina do bairro Rangel”. José Teixeira, antigo trabalhador numa plataforma de petróleo, lembra-se bem dele neste musseque onde também vivia.

“O Avelino tinha uma casa humilde, era uma pessoa simples. Quando o irmão o ia visitar todo o bairro ficava cheio de tropas. Nós nunca víamos o ex-Presidente, ele tinha sempre medo do povo, não andava livremente como o Presidente português Marcelo Rebelo de Sousa. Chegava nos carros de vidros fumados e tinha sempre os guardas em volta, a escondê-lo, andava com as tropas todas”. Sabe que JES tentou tirar o irmão várias vezes do Rangel mas em vão, ele recusava sempre. Até que lhe propôs uma casa no projeto de habitação Nova Vida, uma urbanização de muitos prédios, com rendas acessíveis. “Ele respondeu que não iria sem os seus amigos do bairro, cinco ou seis mais velhos. Zédu arranjou casa para todos e ele foi”.

Beneficiou a família, mas também o inner circle ou aqueles que quis neutralizar ou dominar, como os adversários políticos — um antigo quadro da UNITA confirmou ao Observador que os homens do MPLA “chegavam com malas cheias de dinheiro” para os convencer a mudar de partido.

Mas, para além deste episódio, Avelino terá sido um dos poucos familiares próximos que não beneficiou visivelmente da posição do irmão — o mesmo não se poderá dizer do genro, o general Bento Kangamba, casado com a filha Avelina (que foi secretária pessoal do tio e hoje é diretora adjunta do Gabinete do Presidente João Lourenço), ou do filho Catarino, que foi secretário-geral da Casa Militar. A partir da década de 90, José Eduardo dos Santos foi incluindo paulatinamente a família na oligarquia baseada na renda do petróleo, em que o poder político estava ao serviço de negócios privados.

Não foram apenas os filhos a ter acesso ao mundo empresarial ou a posições de vantagem: a irmã Marta dos Santos terá recebido 800 milhões de dólares (mais de 700 milhões de euros à taxa de câmbio da altura) do BESA (Banco Espírito Santo de Angola) para fazer um projeto imobiliário em Talatona, segundo Paulo Morais, da Associação Transparência e Integridade. Uma senhora com quem “não se brinca” avisou o ex-banqueiro português Ricardo Salgado, a quem o sócio de Marta dos Santos, o empreiteiro José Guilherme, ofereceu 14 milhões de dólares como uma “liberalidade”.

O irmão Luís Eduardo dos Santos foi administrador não executivo da TAAG e viu-se envolvido num caso de corrupção com uma companhia espanhola, a Indra, que esteve nas eleições de 2008, 2012 e 2017. O jornal El Confidencial revelou que o irmão mais novo de JES alegadamente recebeu 108 mil euros de comissões em 2008 e que em 2012 desapareceram mais de nove milhões de euros em contas na Suíça.

Estes são apenas dois exemplos de ligações familiares extra-filhos de JES no circuito do poder. Há uns anos, os jornalistas angolanos fizeram uma lista onde figuravam mais de 16 ministros, secretários de Estado ou administradores de empresas estatais que eram primos ou sobrinhos do ex-Presidente e da ex-primeira-dama, Ana Paula dos Santos.

Beneficiou a família, mas também o inner circle ou aqueles que quis neutralizar ou dominar, como os generais, os juízes, os jornalistas, os empresários ou os adversários políticos — um antigo quadro da UNITA confirmou ao Observador que os homens do MPLA “chegavam com malas cheias de dinheiro” para os convencer a mudar de partido. “Mostrou ser um homem que sabia ler a natureza humana, essa é a inteligência dele; sabe que as pessoas são vaidosas e gostam de poder e ele ‘comprava-as’ assim”, analisa Paulo Inglês.

O problema, como alertou Rafael Marques, é que “em Angola a corrupção mata: a população é privada de recursos básicos para a sua sobrevivência”. Os factos, que Zédu não pode ignorar, estão aí, nos relatórios de Desenvolvimento Humano da ONU, do Banco Mundial ou da Unicef: perto de 40% dos quase 25 milhões de angolanos vive abaixo do limiar de pobreza, com menos de 1,7 euros por dia.

“Criou uma rede clientelar estabelecida no seio da administração pública, exército e sectores estratégicos da sociedade em geral, dando bens e benesses para garantir uma teia de cumplicidades, fidelidades e dependências”, observa a antropóloga Margarida Paredes. Simultaneamente, desenvolvia uma “grande capacidade de criar alianças com diferentes grupos sociais e étnicos que depois descartava, quando essas ligações o começavam a ameaçar”, continua a investigadora.

Se dúvidas restassem, veja-se a estimativa do Banco Mundial no final do mandato de JES: 32 mil milhões de dólares vindos das exportações do petróleo não entraram nos canais legais mas sim nas condutas que abasteceram as lealdades servis das elites militares, políticas e económicas ao então Presidente.

Foi já nos anos 90 que a privatização da guerra permitiu o enriquecimento de uma elite com ligações à escala global.

Vários escândalos a envolverem JES e a sua entourage vieram a público, sendo o mais famoso o Angolagate, com o filho do então Presidente francês, François Mitterrand. A venda de armas soviéticas e francesas em 1993/95 em troca de petróleo, cujas avultadas comissões foram alegadamente pagas a José Eduardo dos Santos e a figuras próximas, pôs durante mais de uma década Luanda e Paris a ferro e fogo. Ou ainda o “Triângulo das Bermudas”, esquemas financeiros que envolviam um offshore para permitir a angolanos bem posicionados o acesso a dinheiro. O FMI, num relatório citado por Ricardo Soares de Oliveira, calculou que desapareceram 4,22 mil milhões de dólares (3,5 mil milhões de euros) das finanças públicas de Angola entre 1997 e 2002.

Em 1999, um relatório explosivo da organização de direitos humanos britânica Global Witness denunciava uma teia intrincada de corrupção que partia do Futungo e se entrançava com intermediários estrangeiros de cadastro nada recomendável ligados ao Irão-Contras ou ao Kremlingate. “Um Despertar Cru — o Papel das Indústrias Petrolífera e Bancária na Guerra Civil Angolana e a Pilhagem dos Recursos do Estado” não usava meias palavras: “Há uma privatização ‘de facto’ da guerra, que está a gerar vastos lucros para generais de topo dentro das Forças Armadas Angolanas, bem como para os negociantes de armas internacionais. Em vez de contribuir para o desenvolvimento de Angola, o petróleo angolano está diretamente a contribuir para acentuar ainda mais o declínio”.

O favorecimento de alguns agudizou-se depois da morte de Savimbi. “De 2002 para cá, o Presidente fez a gestão do Estado a favor da sua pessoa e da sua família”, analisa Marcolino Moco. “Caiu no logro de desfazer as instituições do Estado, quebrou as comportas legais para tudo poder fazer na atribuição da riqueza”, acusa.

Era o tempo da paz, do “Angola começa agora”, da reconstrução, que abria as portas a mais corrupção, com obras que fizeram do país um estaleiro gigante permanente, algumas delas megalómanas, injustificadas, não fiscalizadas e mal executadas.

Eram os tempos loucos dos generais, que já tinham começado nos anos 90, com fortunas gastas em “farras, mulheres e muitos excessos” diz ao Observador, sob reserva de identidade, um luso-angolano que esteve nas milícias do MPLA e trabalhou para um dos grandes generais. Conta histórias macabras de mortes no século XX — “Matei muitos, hoje só queremos a paz ” — de medo e de violência mesmo depois da guerra. “Ou aceitavam o que dizíamos e iam na vertical ou recusavam e iam na horizontal”. Mas recorda também três exemplos com aviões que revelam o desvario do dinheiro que se manteve até este século: um avião, de um dos generais, chegou a Luanda cheio de garrafas de vinho caríssimas embarcadas em França e Portugal; outro desapareceu para sempre cheio de dinheiro a caminho de uma província; outros enchiam-se todos os fins de semana de angolanos ricos que iam a Lisboa fazer compras.

Este antigo combatente nas fileiras do MPLA relata ainda como o jogo trazido pelos chineses se enraizou nas altas esferas do dinheiro angolano. “Faziam jogadas de um milhão, via-se mesmo que não lhes tinha custado a ganhar o dinheiro, iam uma vez por mês jogar ao Casino de Lisboa.” E fala também em festas sem limites: “Participei numa, nos anos 90, no fundo da zona verde, no bairro de Alvalade, em que a piscina estava vazia e nós fomos abrindo garrafas de champanhe e despejando-as lá para dentro até a encher por completo”.

Os milhões dos generais

Ora aqui está um assunto incontornável do reinado de José Eduardo dos Santos. Há quatro décadas que a imprensa nacional e estrangeira denuncia casos e expõe práticas de corrupção. Angola tem sido mesmo um dos países mais corruptos do mundo a julgar pelos números da Transparency International. Os últimos dados, anunciados no início de 2020, apresentaram uma melhoria considerável: teve 26 pontos em 100 na escala da transparência, passando da 165.ª para a 146.ª posição dos 176 países analisados.

A organização, com sede em Berlim, atribuiu este progresso (apesar de estar muito abaixo da média, que é de 43 pontos) à luta contra a corrupção, bandeira da governação de João Lourenço que veio abalar José Eduardo dos Santos. A filha Isabel viu as suas contas e bens arrestados e foi acusada pela Procuradoria da Justiça de Angola de desviar fundos públicos, de branqueamento de capitais e de gestão danosa, sendo alvo de vários processos criminais e cíveis em que o Estado reclama 4,4 mil milhões de euros. O filho Filomeno Santos, Zénu, foi condenado a cinco anos de prisão pela transferência para o estrangeiro de 500 milhões de dólares do Fundo Soberano de Angola que ele dirigia.

Pela primeira vez, José Eduardo dos Santos é citado num despacho judicial em Angola. O Procurador-Geral da República, ao determinar o arresto dos bens da filha Isabel e do genro Sindika Dokolo (que morreu a 29 de outubro último num acidente de mergulho no Dubai), refere várias vezes que o ex-Presidente de Angola autorizou o desvio de cerca de 115 milhões de dólares do erário público e favoreceu a filha no comércio de diamantes.

Como se não bastasse a investida judicial, em janeiro deste ano surgiu o escândalo “Luanda Leaks”: o Consórcio Internacional de Jornalismo de Investigação revelou mais de 715 mil ficheiros, que detalhou alegados esquemas financeiros de Isabel dos Santos e do marido que lhes terão permitido retirar verbas públicas de Angola através de paraísos fiscais.

José Eduardo dos Santos não é diretamente visado nestes processos, mas, diz uma fonte próxima da família, “é como se fosse, quem toca nos filhos, toca nele”. Ficou “tão perturbado e chocado com este duro golpe” que uma fonte do Bureau Político do MPLA adiantou ao Observador que foi aconselhado a não ver televisão.

“Talvez, a nível da Europa, não se tenha a noção do que é ter o filho homem preso. Para nós, em África, é muito. É humilhante“, comenta David Mendes, advogado que investigou a fortuna de JES e denunciou esquemas de corrupção do regime, mas que agora vira as críticas noutra direção. “Não me venham dizer que são os filhos de José Eduardo dos Santos que tomaram conta do país: não é verdade. Havia uma elite do partido no poder”.

David Mendes, que tentou impugnar a nomeação de Isabel dos Santos para a presidência da Sonangol, soma razões: “Conhecemo-nos todos em Angola. Sabemos quem são os ricos nesta terra“.

Mas não se saltem capítulos. Como é que Angola se tornou num “Estado Negócio” — como Filomeno Vieira Lopes o qualifica — onde a corrupção é encarada como normal?

Grande parte da raiz do problema está no próprio José Eduardo dos Santos, sustentam ativistas como Rafael Marques: “O seu legado é não só de repressão, opressão e saque do povo; o mais importante é a destruição da moral da sociedade angolana. Foi o líder que mostrou o caminho para a corrupção, defendendo-a como ação política, institucionalizando-a”. Todavia, acrescenta: “Também não vamos ser injustos no sentido de dizer que era só José Eduardo dos Santos, porque todos se puseram a fazer patifarias. Porque sabiam que em última instância, historicamente, quem seria julgado seria Dos Santos”.

Enquanto o administrador de empresas que conhece bem o MPLA e Angola não tem dúvidas — “Ele era o zénite da corrupção, comandava o sistema cleptocrata” —, Patrício Batsîkama procura enquadrar: “A cleptocracia era claramente visível e não só na família presidencial. O Presidente precisava de uma classe consistente de empresários angolanos, tínhamos independência política mas não económica. Muitos receberam muito dinheiro, mas levaram o país à falência, dirigiram Angola como se fosse a boutique deles. Pensaram que o dinheiro era para gastar em casas, carros e mulheres, e não, era para investir”.

Esta estratégia de distribuir riqueza para criar um tecido empresarial nacional foi várias vezes assumida por José Eduardo dos Santos. “Depois de a Guerra Civil ter terminado, na ânsia de criar uma burguesia endinheirada angolana e de distribuir a riqueza de Angola pela elite militar e política ele fez um discurso onde defendeu ‘a acumulação primitiva do capital’ e a adesão a uma lógica capitalista do mercado. JES nunca foi inocente, foi tudo deliberado“, afirma Margarida Paredes ao Observador, a partir do Brasil.

Outras afirmações do Presidente, como a “necessidade de criar uma burguesia forte” ou a constatação de que “nenhum angolano vive só do seu salário” apenas ajudam a condescender, senão a legitimar, a corrupção.

O economista Sérgio Calundungo diz que “ainda está para aparecer quem criou e pôs na cabeça de Dos Santos a ideia da acumulação primitiva de capitais”. O coordenador do Observatório Político e Social de Angola refere como essa teoria é “tão antiga e tão pouco estruturada”, apesar de ter sido objeto de livros no país que diziam “quão estratega José Eduardo dos Santos estava a ser” ao falar nisso.

O que cresceu não foi uma classe empresarial forte, mas, nas palavras de Ricardo Soares de Oliveira, “uma classe de rendeiros” que monopolizou os grandes negócios, erguendo fortunas pessoais sem alguma vez terem investido nos sectores produtivos. “A elite no poder converteu-se entusiasticamente ao capitalismo de compadrio”, assistindo-se a uma “privatização do poder”, continua este especialista em assuntos angolanos.

José Eduardo dos Santos não só escancarou a porta à corrupção e a institucionalizou como, mais do que condescender, a normalizou e legitimou, com frases como “nenhum angolano vive só do seu salário”, recorda José Eduardo Agualusa.

Não se julgue, porém, que os mecanismos de corrupção centrais nasceram com a abertura ao capitalismo. Já na década de 80, à conta da guerra, José Eduardo dos Santos gatinhava nesse chão ao montar um sistema propício à fraude.

O longo conflito armado e uma administração pública esvaída de quadros no processo de descolonização deram-lhe argumentos para assumir “o controlo do fluxo das receitas petrolíferas” e “criar um Estado paralelo centrado na Presidência e na Sonangol”, fazendo-a reportar diretamente ao Futungo, escreve Ricardo Soares de Oliveira no livro “Magnífica e Miserável, Angola desde a Guerra Civil: “Ao manter a Sonangol fora da esfera de ação do partido-Estado, JES adquiriu um extraordinário grau de poder discricionário sobre mais de oitenta por cento das receitas públicas, as quais caíam em catadupa pela estrutura do poder abaixo — nas condições impostas por ele”.

Certo de que “dinheiro é sinónimo de poder”, como diz Justino Pinto de Andrade, assegurada a fonte dos petrodólares, agiu em conformidade — usou-o para dominar rapidamente os únicos dois poderes que lhe poderiam fazer frente: o militar e o partido. Transformou o MPLA num partido-Estado, reconverteu os generais em empresários, passando a imagem de recompensa pelo que sofreram na guerra, mensagem que até é aceite pelos opositores. “Enquanto angolano, não posso aceitar que indivíduos que lutaram pela independência e bem-estar deste país, fiquem a viver na miséria ou que os estrangeiros tenham um nível superior ao deles”, concede David Mendes.

Em 2017, Emílio Odebrecht, que estava a ser julgado no Brasil no caso Lava Jato, concretizou este modo de agir. Um dos donos desta grande construtora que durante o “eduardismo” deu cartas em Angola revelou que José Eduardo dos Santos lhe pedira para a empresa ajudar ex-generais a serem empresários.

Se a distribuição da riqueza por alguns já se faz nos anos 80, o impulso para o desvio do dinheiro e recursos públicos também. Ricardo Soares de Oliveira dá como exemplo “a tentativa de gestão de um saco azul através do comércio de petróleo da Sonangol no Reino Unido” que não teria sido possível sem “o aval político a alto nível”.

No entanto, continua o académico, foi em 1992, com o ressurgir da guerra, que “o sistema paralelo sustentado pelo petróleo se tornou ‘essa construção gótica de acumulação de riquezas‘” como lhe chamou o economista e consultor internacional Olivier Vallée. Um edifício que floresceu no período da paz, sob o lema de reconstruir Angola, e que só viria a começar a ruir quando as rendas do petróleo caíram a pique, na segunda década do século XXI.

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