A aprovação de uma nova Lei Fundamental, em que o partido governante aceitou alterações à proposta original e a UNITA deu sinais de concórdia, marca a nova etapa do país lusófono
“Hoje é um dia histórico em que não há vencedores nem vencidos. Hoje venceu Angola e a democracia.” Foi nestes termos que o chefe da bancada parlamentar do MPLA — partido que governa desde a independência —, Virgílio Fontes Pereira, qualificou o resultado das discussões públicas que culminaram, esta semana, com a adoção de um novo texto constitucional em substituição parcial da Constituição aprovada em 2010.
Durante três meses, forças políticas e representantes da sociedade civil envolveram-se em amplos debates que passaram por alterações de fundo à proposta inicial de revisão pontual da Constituição, apresentada em abril pelo Presidente João Lourenço.
Entre as grandes alterações agora aprovadas figuram a constitucionalização do regime de fiscalização parlamentar aos atos do Governo, a consagração da independência do Banco Nacional de Angola na definição da política monetária e cambial e a retirada do Presidente do Tribunal Supremo do Conselho da República.
Com esta revisão, assiste-se pela primeira vez em Angola à aprovação de um diploma completamente diferente da iniciativa de um Presidente. Na visão de alguns especialistas a versão original de Lourenço, ao conter “alguns pecados originais, como a questão dos confiscos, da economia informal e, pior, da divisão dos tribunais soberanos e não soberanos, acabaram por colocar, em bloco, a classe de profissionais jurídicos contra a proposta”.
Recuo de João Lourenço ou clarificação?
O professor catedrático Carlos Feijó considera, em declarações ao Expresso, que “não houve recuo em relação à lei anterior, mas clarificação e desenvolvimentos constitucionais” que não convencem a oposição. Essa pretendia “uma alteração do sistema eleitoral e dos partidos e um sistema de governo mais parlamentarizado ou com domínio parlamentar”.
Outro jurista do MPLA, que pediu anonimato, considera a proposta inicial “o fim do mundo” e um atestado de “descredibilização do Presidente”. Propôs, portanto, a eliminação liminar da ideia dos confiscos e da economia paralela incluída na versão inicial.
No seu parecer técnico, ao defender também a eliminação destes conceitos, Feijó crê que a sua constitucionalização “nos termos propostos, colocaria a Constituição angolana ao lado das constituições pouco amigas do investimento e faria aumentar o risco político do investimento no país”. Removido este ponto, foi reintroduzida a fiscalização parlamentar, suspensa por ordem do anterior Presidente, José Eduardo dos Santos, com a entrada em vigor da Constituição de 2010.
Com a nova lei, o Presidente continua, contudo, “isento de responsabilidade política, não podendo, por esta via, ser afastado das suas funções”. Outra novidade é a constitucionalização da norma sobre transição de poderes entre presidentes. Fica proibida, a partir do início de cada campanha eleitoral, a prática de atos administrativos extraordinários pelo chefe de Estado cessante, passando o Presidente eleito a ter acesso à informação governativa. “O objetivo é evitar o que fez Eduardo dos Santos, quando, em vésperas da posse do seu sucessor, em 2017, promulgou uma série de decretos que visavam condicionar a governação de João Lourenço”, esclarece o historiador Arnaldo Malaquias.
Três décadas após as primeiras eleições democráticas, parte dos angolanos residentes no exterior vão poder votar pela primeira vez, em 2022, para eleger o Presidente e os deputados. “Estas alterações dão resposta às reivindicações que há muito vinham sendo feitas pela sociedade”, analisa o jurista Bonifácio André. Acrescenta: “Vão ser instituídas, por fim, comissões parlamentares de inquérito e audições parlamentares”.
Por ter sido rejeitada a institucionalização do círculo exterior, os angolanos no estrangeiro votarão apenas para efeitos de apuramento do círculo nacional, estando vetado o direito de voto aos emigrantes comuns. “Se todos no país temos votos relativos a um círculo eleitoral [provincial], porque serão os votos dos angolanos no exterior simplesmente jogados para o saco sem fundo que é o círculo nacional? O que impede realmente o estabelecimento de um círculo no exterior?”, interroga-se Maurílio Muliele, dirigente da UNITA (oposição). Havendo desconfiança, peritos em logística defendem uma auditoria prévia a todo o sistema de cruzamento de dados.
Abstenção histórica da UNITA
A institucionalização da independência do BNA suscitou reservas à UNITA que, segundo este médico, receia que “o Presidente possa valer-se do seu poder discricionário para apear o Governador do Banco Central a qualquer momento, podendo beliscar a autonomia que se pretende para esta instituição”.
Aprovado pela totalidade dos deputados do MPLA, o texto final mereceu a abstenção da maior força da oposição, que, pela primeira vez no Parlamento, contrariou a tradicional tendência de votar sempre contra as propostas do partido governamental.
Apesar de admitir que a abstenção tenha sido “o ponto fraco” deste processo, Virgílio Fontes Pereira reconhece que “desta vez, houve evolução por parte da UNITA”, cuja atitude diferenciadora é “um marco histórico”. O partido do “galo negro”, através da deputada Arlete Chimbinda, justificou a posição “por entender que a nova versão aprovada não tornará a Constituição mais cidadã e democrática”.
Detendo a maioria parlamentar, o MPLA foi confrontado com a oposição da UNITA e de outras formações e acabou por abrir mão do gradualismo na institucionalização das autarquias locais, ao mesmo tempo que foi fixado o calendário eleitoral.
Para a oposição, “a remoção do gradualismo da Constituição não é garantia de que as autárquicas venham a realizar-se em todo o território e em simultâneo, como pretendemos”. Fonte governamental admite ao Expresso que “não é seguro que as eleições autárquicas venham a ser em simultâneo”, o que leva a UNITA a recear “o risco de ver o termo ‘gradual’ substituído pelo termo ‘faseado’, que em rigor será a mesma coisa”.
A tutela do mérito da descentralização reivindicada pelo Executivo, confinada à componente administrativa, foi afastada. Em seu lugar, foi restaurada a tutela da legalidade e reposta a sua abrangência político-administrativa.
Concertação política, apesar dos remoques mútuos
Ao chumbar as propostas avançadas pelo Presidente no domínio do poder judicial, a UNITA, apoiando a posição de muitos juristas, quis provar que “representavam um retrocesso democrático, ao subalternizar o Tribunal Constitucional em relação ao Tribunal Supremo, ao atribuir competências de representação do judiciário ao Conselho Superior da Magistratura e ao colocar em xeque a soberania dos tribunais comuns”.
Iniciadas com um “diálogo de surdos”, as discussões abriram espaço à via negocial. O líder da bancada do MPLA, Fontes Pereira, assegura que o debate só não foi mais aprofundado devido “a intransigência da UNITA”. Já a “concertação política” acabou por ser assumida por Governo e oposição como único caminho capaz de preservar a estabilidade em Angola.