Como é possível que Donald Trump, com todos os defeitos pessoais e de carácter que lhe conhecemos, depois de ter gerido pessimamente a Covid 19 e de ter provocado o início do que pode vir a ser uma longa crise económica, ainda consiga obter mais de 72 milhões de votos, o segundo maior número total de votos da história da república americana? Esta é a pergunta que me tem incendiado a mente e que continuo a colocar a mim mesma desde a semana passada, à medida que tenho vindo a observar com uma fascinação entorpecida as complexidades incessantes, e incrivelmente lentas, que têm rodeado a contagem de votos das eleições americanas. Temos seguido isto como se estivéssemos a ver o último thriller de sucesso de Hollywood, enquanto boletins de voto pelo correio e boletins de voto indevidos (e há uma diferença!) são contados, recontados, e, em que recursos judiciais vão sendo interpostos em vários estados.
Joe Biden ganhou, apesar do silêncio ensurdecedor da parte do Presidente Trump, e talvez possamos agora todos dormir um pouco melhor à noite e esquecer por algum tempo orientações políticas geradas no Twitter. Mas então, por que razão estou assim tão impressionada com o desempenho de Trump nesta eleição? Até porque, de acordo com o que foi publicado num jornal: Trump é o homem que todos deveríamos odiar. É o homem que, nos últimos quatro anos tem sido incessantemente acossado pelas elites culturais. O homem que praticamente nenhum meio de comunicação social americano apoiou. Alguém que é detestado pela maioria das instituições globais; motivo de chacota entre líderes estrangeiros e até mesmo entre os aliados tradicionais. Alguém que o mundo académico, as elites da comunicação de massas, as oligarquias das redes sociais, celebridades e todos os outros fazedores de opinião rotularam de Hitler do século XXI.
Os analistas políticos disseram-nos que Trump foi a pior coisa que aconteceu à política ocidental nas últimas décadas. Chegaram a afirmar que ele destruiria o sistema democrático americano de equilíbrio e controlo, que tão meticulosamente havia sido arquitectado pelos “Pais Fundadores” da nação americana, e que terá servido não só a América, mas o resto do mundo durante mais de dois séculos. Algumas autoridades asseveraram que Trump provocaria o início da Terceira Guerra Mundial, causando-nos uma sensação incómoda que nos levava a pensar que se Trump ganhasse, o mundo tal como o conhecemos seria destruído. E, ainda assim, Biden, com uma experiência política quase inigualável à frente de uma máquina partidária que gastou mais dinheiro numa campanha eleitoral do que qualquer outra na história, não conseguiu uma vitória esmagadora. Afinal a América não foi atingida pela proverbial “onda azul”.
Como explicar o fascínio de Trump? Os historiadores do futuro terão a grande vantagem de ter tido o benefício do tempo decorrido para que possam formular a resposta a essa pergunta de uma forma mais abrangente e imparcial. Fenómenos complexos como o do trumpismo requerem explicações bem pensadas e detalhadas. Não existe uma resposta simples, e aqueles que tentam dá-la ou são ingénuos ou partidários.
Nenhuma resposta que eu Vos possa dar hoje será completa. Porém, é fundamental que comecemos a tentar compreender o apelo de Trump. Metade do eleitorado americano decidiu sair de sua casa no meio de uma pandemia para ir votar em Trump. Enquanto que os apoiantes de Biden votaram, na sua maioria, para afastar Trump do poder, mais do que em Biden propriamente dito, os partidários de Trump votaram em Trump. Veja-se por que prisma se quiser, é um facto que estas eleições se centraram à volta de Trump. Algo bem compreendido pelos responsáveis pela campanha de Biden, que tentaram transformar estas eleições num referendo à personalidade e carácter de Trump, e se ofereceram para restaurar o que chamaram “a alma da nação”, a própria génese dos valores americanos.
Se nos situarmos a um nível francamente superficial, poderemos facilmente reconhecer o fascínio gerado pela história de Trump, tratava-se: de um empresário multimilionário, daqueles que se acreditava serem capazes de meter mãos à obra e fazer o trabalho bem feito; de alguém que, sendo estranho ao sistema de governação instituído, iria fazer uma limpeza de fundo em Washington, acabando com toda a corrupção e com o egocentrismo dos burocratas. Trump personificava ainda o glamour de alguém que tinha casado várias vezes e sempre com mulheres lindíssimas, possuía belas propriedades e edifícios icónicos na cidade de todas as cidades, e que tinha sido o apresentador de um dos reality shows mais populares da América.
É evidente que tudo isto, debaixo de escrutínio, não passa de fantasia. Mas a América adora fantasia e constituía, à época, um terreno fértil em que um mediático e astuto candidato pudesse plantar sementes de idolatria. Donald Trump não é nenhum idiota, é um homem de negócios que construiu e foi desenvolvendo a sua marca ao longo de décadas e teve as suas compensações, primeiro em 2016 e, de novo, em 2020.
Todavia, a explicação para o seu sucesso é muito mais profunda. Se dinheiro e perspicácia para os negócios fossem suficientes para o sucesso, Michael Bloomberg e outros empresários incrivelmente ricos, e verdadeiramente experientes, poderiam ter-se aventurado numa demanda bem-sucedida ao mais alto cargo do país.
Trump ergueu-se no seio de uma América profundamente dividida. Por várias razões, o fenómeno Trump representa uma revolta contra a supremacia cultural do politicamente correto e da sua “cultura de cancelamento”, que consideram que, quaisquer opiniões ou crenças julgadas inadequadas, devem ser permanentemente banidas/apagadas do léxico comum. No fundo, Trump emergiu como o baluarte de todos aqueles que se sentiam privados dos seus direitos, ou de que a política de identidade é mais importante do que a economia e os empregos.
Como é que Trump, um multimilionário, que reduziu os impostos dos ricos e que tinha a intenção de acabar com o Obamacare, que ajudara milhões de americanos a ter acesso a seguro de saúde, se tornou o bastião da esperança do homem trabalhador, é verdadeiramente uma jogada de mestre. Mas, o facto é que Trump passou realmente a ser o candidato do trabalhador.
Os democratas, nomeadamente a parte mais radical do partido, têm vindo a perder pontos de contacto com as suas bases, e Trump teve a capacidade de explorar essa falha. Para o americano médio o que interessava era a situação económica e o regresso do emprego na indústria, as questões rácicas ou a situação das mudanças climáticas diziam-lhe pouco. Os democratas não conseguiram compreendê-lo em 2016 e cometeram o mesmo erro colossal em 2020. É digno de nota que, embora a esquerda tenha forçado a teoria de que Trump era um supremacista branco, Trump ainda tenha sido capaz de, nestas últimas eleições, obter dividendos eleitorais junto da comunidade latina (mais especificamente entre os cubanos e os venezuelanos na Flórida e no Rio Grande, Texas) e entre a população negra, conquanto tenha perdido, em geral, algum apoio entre a população masculina branca. Ou seja, nitidamente os seus apoiantes dividiram-se muito mais por classe do que por etnia.
Finalmente, e deixei o argumento mais enigmático, e possivelmente o mais contestado, para último. Acredito que Trump é apoiado precisamente pelos seus defeitos, do que apesar deles. Como é isto possível? Tem o leitor toda a legitimidade de perguntar. Afinal, trata-se de um homem que, muito provavelmente, carece de todas as virtudes que admiramos e que ainda constitui um modelo de ganância, narcisismo, malícia, mesquinhez e deslealdade. Aliás, nem o próprio Trump ambiciona ser mais do que isto. Com Trump, sabemos exatamente com que contar e, mais importante ainda, nunca nos sentiremos inferiores ou julgados pelas nossas falhas. Como Sam Harris, o apresentador de um conhecido podcast de centro-esquerda, afirmou: “Trump proporciona um lugar verdadeiramente seguro à fragilidade, à hipocrisia e às inseguranças humanas. Graças à sua falta de vergonha pessoal, brinda-nos com a possibilidade duma expiação da nossa própria vergonha, oferece-nos uma espécie de bálsamo espiritual.”
Consideremos, por um momento, a outra face desta imagem. A mensagem da esquerda, é o absoluto oposto desta: uma mensagem de paternalismo sobranceiro, hipócrita e crítico. Os americanos, ou melhor, os americanos brancos, são levados a sentirem-se culpados não apenas dos seus próprios pecados, mas também dos pecados dos seus progenitores. A América nasceu em pecado, foi construída tendo por pilares a escravidão e o colonialismo. Se, por acaso, faz parte da tribo de homens heterossexuais brancos – o núcleo de apoio de Trump – é, muito provavelmente, um racista, um homofóbico, um transfóbico, um islamofóbico, um sexista, em suma, um bárbaro. Derrube as estátuas e ajoelhe-se!
Temos, pois, duas posições justapostas. Qual a mais apelativa? Imagino que seja a que não nos faça sentir inferiorizados, a que não limite a liberdade de expressão, a que não nos force a repetir o que querem que digamos, que não nos obrigue a ver o mundo através de olhos que não os nossos. Depois de décadas do politicamente correcto impregnado em todas as instituições americanas, desde a comunicação social às universidades, à indústria do entretenimento, ao local de trabalho, Trump acabou por proporcionar para muitos americanos uma pausa bem-vinda, um intervalo no seio da política racial e da identidade, onde a etnia, o género ou a preferência sexual eram exclusivamente responsáveis, consoante este pensamento, por determinar a nossa visão do mundo, o nosso conceito de justiça e de organização social e económica. Trump veio dar vós a muitos que se sentiam menosprezados pelas elites, que se sentiam deixados para trás, e que tinham vergonha de expressar as suas opiniões.
Concluindo, rezo para que Biden comece a curar as feridas duma sociedade americana altamente polarizada. Só o poderá fazer se governar ao centro, e se for capaz de estabelecer pontes com os republicanos moderados com o objetivo de resolver questões urgentes. Rezo que daqui a quatro anos deixe o país um pouco melhor, mais unido, um país onde um populista como Donald Trump, com todos os seus defeitos e inépcia para governar, nunca venha a poder ter esperanças de ser reeleito. Não vai ser tarefa fácil. Se Biden se tornar cativo dos membros mais radicais de esquerda do Partido Democrata, continuaremos a ter uma América dividida, tribalizada, pronta para acolher, daqui a quatro anos, uma outra figura política populista semelhante a Donald J. Trump.
Teresa Roque ( OBSERVADOR )