“Regime não criou uma democracia, mas um sistema autoritário”- Fernando Macedo

A 4 de Abril de 2002, o MPLA e a UNITA, as duas formações políticas beligerantes que estiveram envolvidas desde a independência do país, numa longa guerra civil que se arrastou por 27 anos, assinavam em Luena, Moxico, os acordos que permitiram a paz aos angolanos.

Fernando Macedo, professor na Universidade Lusíada de Luanda, diz que o fim da guerra foi o principal ganho para o país, porém, reconhece que nestes últimos 20anos, o regime criou “um sistema eleitoral autoritário”.

RFI: Vinte anos depois da assinatura dos acordo de paz, quais foram os principais ganhos para Angola?

Fernando Macedo: O principal ganho foi o fim da violência armada entre a UNITA e o MPLA, o governo, mas continuamos com o problema de Cabinda. Do ponto de vista político, nos últimos vinte anos, o regime não criou uma democracia, mas um sistema eleitoral autoritário em que há eleições fraudulentas.

Os tribunais mostram-se politicamente dependentes do poder político e do ponto de vista económico, o regime não conseguiu usar os cerca de 500 mil milhões de dólares que tinha disponível e incorreu no pecado da corrupção generalizada da elite da cúpula do MPLA.

Está a afirmar que houve uma captura do Estado?

Com certeza. Houve uma captura do Estado, mais do que isso. Angola não tem uma democracia, o país tem um regime eleitoral autoritário.

Considera que 20 anos depois do calar das armas ainda falta alcançar a paz social?

A Constituição da República de Angola define a paz como tendo por base o primado do direito e da lei. Ora bem, este regime é um regime que não respeita nem a Constituição, nem a lei e falar da paz social é difícil, complicado, porque nós vivemos numa situação de opressão política. Este regime desrespeita as liberdades.

Uma paz frágil?

Eu diria que é uma paz baseada na opressão do povo, que não se pode expressar de forma regular. Os cidadãos só conseguem realizar as reuniões e as manifestações que são permitidas pelo regime. O regime deixa-nos realizar reuniões e manifestações quando entende que estas não vão pôr em causa a sua manutenção. Tudo o resto é para inglês ver.

A paz tem sido usada como uma arma de arremesso?

Sim, esta é a opinião de muitas pessoas aqui no nosso país. A paz é usada, inclusivamente como publicidade nas eleições. Por exemplo, houve umas eleições, já não me lembro se foi em 2012 ou 2008, onde o slogan da própria Comissão Nacional Eleitoral era: “Vota na paz, vota na democracia”.

Ora bem, uma Comissão Nacional Eleitoral independente não deve promover nenhum slogan, deve ser imparcial até nesse plano. A paz aqui é de facto um instrumento de dominação ou de domínio do povo.

Estes últimos anos trouxeram uma Constituição efectiva para Angola. Que benefícios trouxe a materialização da Constituição?

A nossa Constituição foi feita à medida dos desígnios de poder do Presidente José Eduardo dos Santos. Depois, o Presidente João Lourenço promoveu uma revisão da Constituição, mas foi para mexer naquilo que lhe interessava. Quando, no ano passado, se promoveu a revisão da Constituição, vários sectores da sociedade civil e da oposição político-partidária manifestaram-se exactamente contra a redução da revisão aos interesses do partido-Estado.

A nossa Constituição, mesmo naquela parte que estabelece, consagra os direitos fundamentais e outros bens constitucionais, que são próprios de uma democracia, nessa parte ela não é respeitada. A nossa Constituição é mais uma Constituição nominal do que outra coisa. Tem o nome de Constituição, mas a prática política da elite que manda é contrária à própria Constituição.

Em 20 anos, o Estado angolano não conseguiu criar muitos empregos, apesar do boom económico que o país viveu até 2014. O que falhou?

Faltou um regime que fosse capaz de implantar a democracia e falhou também a responsabilização política. O MPLA, um partido-Estado, um partido autoritário, assenhoreou-se do poder, por via da farsa das eleições. Teve centenas de milhões de dólares e desbaratou esse dinheiro todo, implantando um regime opressivo que se mantém por causa da opressão dos cidadãos.

Mais do que isso, este regime não é competente. Mesmo com várias maiorias qualificadas no parlamento, que lhe permitiram fazer as leis que quisesse, que lhe permitiriam aprovar todos os orçamentos, todos os projetos que tinha no seu plano de desenvolvimento e mais os quinhentos mil milhões de dólares, não foi capaz de promover um sistema de saúde com qualidade razoável, nem um ensino público com o mínimo de qualidade. Neste momento, temos as greves dos professores do ensino superior público, greves dos médicos para contestar a fraca qualidade do ensino e da saúde. Por outro lado, estão a apontar os erros que têm a ver com as condições indispensáveis que não foram criadas para que a saúde e a educação possam desempenhar o seu papel no desenvolvimento [do país].

Estes últimos anos foram marcados pelo processo mediático dos 17 activistas, acusados do golpe de Estado em 2015. Que avaliação faz da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa no país?

Aqui pode falar-se, porém falar, criticar o regime, tem um preço. Ou se é ostracizado ou perseguido. Por exemplo, neste momento, o regime está, outra vez, numa lógica de perseguição de jovens activistas sob a acusação de que estão a incitar a violência, a rebelião.

Por que é que Angola ainda não conseguiu realizar eleições autárquicas?

Primeiro, o Presidente José Eduardo dos Santos e agora o Presidente João Lourenço não quiseram, pura e simplesmente, realizar as eleições. Não querem as eleições autárquicas, não querem a democracia local porque, provavelmente, será mais difícil orquestrar fraudes a nível local do que a nível nacional e também se sabe que há partidos políticos angolanos, na oposição, que têm uma forte implantação local e muito provavelmente a disputa nesses locais, nos quais partidos da oposição têm uma forte implantação e preferência do eleitorado, o MPLA terá dificuldades em ganhar as eleições a nível local, não querendo assim pôr em risco o seu poder centralizado e autoritário.

O país realiza eleições no mês de Agosto. Em que medida é que continua a haver a dicotomia no xadrez político angolano?

Bem, isso pode acontecer e é natural que aconteça se houver duas forças políticas que tenham a esmagadora maioria da preferência dos eleitores. Mas o problema das eleições em Angola não é esse. O problema é que as eleições em Angola são uma paródia da democracia. Há critérios padronizados na Constituição e na lei eleitoral, ou nas leis eleitorais de Angola e nos diplomas internacionais a que Angola aderiu, que são aqui violados de forma sistemática pelo regime.

A título de exemplo, um dos elementos que se considera indispensável numa democracia eleitoral são órgãos de comunicação social independentes. Uma imprensa livre, actuante e cumpridora do seu papel. Os órgãos mais importantes em Angola são os órgãos de comunicação do Estado e estes órgãos estão governamentalizados, partidarizados e actuam permanentemente, violando a Constituição e a lei de imprensa de Angola. Esses órgãos fazem campanha permanente a favor do partido-Estado, não promovendo o contraditório, não dando espaço aos partidos políticos da oposição e organizações da sociedade civil autónomas, que escrutinam a acção do executivo e isto é um vício muito grande que tem influência nos resultados eleitorais.

A candidatura do líder da UNITA, Adalberto da Costa Júnior, pode alterar o cenário político em Angola?

Uma das características da democracia é a alternância política no poder. Vamos ver qual será o figurino de eleição que nós vamos ter. Se vamos ter uma eleição, mais uma vez fraudulenta, ou se vamos ter uma eleição não fraudulenta…

 

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