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Repressão em Angola: A grande “ilusão de João Lourenço”

Entrou com a promessa de reformador, mas a crise económica, a continuação dos abusos entre os poderosos e a violência policial durante a pandemia criaram um rasto de manifestações e mortes. O seu silêncio é entendido como cumplicidade.

Orio Cuango traz o ouro e devolve os corpos dos garimpeiros que desaparecem misteriosamente. É o que têm dito a Pedro Neto os seus contactos na vila mineira do Cafunfo, a 750 quilómetros de Luanda e a dois dias de viagem numa estrada em mau estado, segundo notou a agência Lusa.

Como o rio ainda não devolveu os corpos – mas ainda está a tempo de o fazer – o responsável pela Amnistia Internacional (AI) Portugal não consegue fechar o número de mortos de um violento confronto com a polícia, a 30 de janeiro.

A agência Lusa reuniu testemunhos que falam em “mais de 20 mortos”; os partidos da oposição afirmaram que seriam 25. Na última terça-feira, 9, a AI tinha confirmado a morte de 10. E Pedro Neto recordava à SÁBADO as fotos de uma possível 11ª vítima que vira na véspera: “O cadáver de um jovem”, em que se observava “muita violência e tortura”.

O que esteve, afinal, na origem do “massacre” do Cafunfo, como tem sido tratado por bispos e organizações não governamentais? A versão do povo, que trabalha na mineração explorada por uma empresa detida em parte pelo Estado, é que a polícia reprimiu uma manifestação desarmada que alertava para a miséria – os dois dias de caminho desde Luanda até esta área na Lunda Norte são apenas o prenúncio da distância social e económica dos 90 mil que ali vivem: as ruas estão cheias de lixo, não há água, luz, medicamentos e “o governo [local] não apoia nem um pouco”, disse a desempregada Rossana da Silva à Lusa.

Já as autoridades referem-se ao incidente naquele último sábado de janeiro como uma “rebelião” de 300 manifestantes do Movimento Protetorado Lunda Tchokwe, que defende a autonomia da região das Lundas (o líder foi detido no dia 9). Segundo a versão policial, a resposta musculada deveu-se à tentativa de invasão de uma esquadra por este grupo.

Este poderia ser um ato de violência isolado contra os angolanos, mas a situação tem-se agravado, sobretudo no último ano com a pandemia e com especial incidência em Luanda, Cabinda (e agora na Lunda Norte), disseram três fontes conhecedoras do terreno citadas neste artigo.

Sem máscaras, com violência

Em maio de 2020, a Deutsche Welle perguntava se a “polícia angolana mata mais que o coronavírus?” O país tinha 50 casos positivos e três mortos. Mas a polícia nacional (PNA, na sigla) contabilizava cinco mortos nas ações nas ruas, que visavam a manutenção do Estado de Emergência, instituído a 27 de março.

Apesar de não haver registo de indicações superiores para que os agentes respondessem com violência ao incumprimento das regras (como a ausência de máscaras em público ou dentro das viaturas), as palavras do ministro do Interior, Eugénio Laborinho, foram assumidas como o gatilho para a violência: a polícia, anunciou, não estaria nas ruas a “distribuir rebuçados nem chocolates”. Em vez disso, distribuiu cacetadas e tiros que, segundo o último levantamento da AI e da ONG Omunga, vitimou 11 pessoas. Mas estas organizações alertam para a probabilidade de “o número ser muito maior”. Entre eles estava um adolescente de 14 anos, morto a tiro pela polícia que tentava dispersar populares numa praia de Benguela.

Em setembro, o pediatra Sílvio Dala, de 35 anos, seguia no seu carro quando a PNA o mandou parar. Apesar de sozinho, as regras impunham que usasse máscara e o médico não a tinha. Foi levado para a esquadra para fazer o pagamento eletrónico da multa. E, a partir daí – e até o inquérito oficial estar concluído – apenas se pode especular sobre o que aconteceu. Só uma certeza: quando ainda estava sob custódia policial, Sílvio Dala, pai de quatro filhos (um deles de 3 meses), chegou morto ao hospital. Os agentes alegam que caiu e fez um ferimento fatal na cabeça. Mas o colega, também médico, que fez o reconhecimento do corpo, assegura que a ferida não podia resultar de uma queda.

O que justifica as saídas à rua, segundo Edmilson Ângelo?

1.A Tv ao seu serviço
O investigador considera que os órgãos tradicionais (a TPA, a TVZimbo, que era de uma filha do ex-PR) continuam a ser usados "como meios do Estado".
2. Redes sociais
tornaram-se o meio de acesso a informação (com o risco das notícias falsas que muitos não sabem reconhecer). E são "a maior dor de cabeça do Estado [porque] a Internet é impossível de fechar".
3. A guerra
era um argumento que levava as gerações anteriores ao silêncio contra o Estado. Os jovens não têm esse receio.

Então o que lhe sucedeu? A AI Portugal não tem conhecimento de conclusões sobre qualquer inquérito às mortes causadas pelas autoridades durante a pandemia, diz Pedro Neto.

O peso colonial

Neste ambiente de repressão, o silêncio do Presidente da República, João Lourenço, é mais um incómodo que tem sido vocalizado nas ruas, sobretudo entre os jovens. No primeiro ano, estes acreditaram nas promessas de abertura do substituto de José Eduardo dos Santos. “A reação do Governo deveria ser pedagógica, mas há um silêncio que acaba por ser cúmplice”, refere o jornalista Félix Abias. “As manifestações têm sido uma realidade em todo o país”, acrescenta à SÁBADO Edmilson Ângelo. “Não foi o povo que pediu para ter expectativas. O Presidente apresentou-se [em 2017] como alguém de dentro que vai fazer a revolução que o povo precisa”, diz o professor da Universidade Royal Holloway, em Londres. E no primeiro ano cumpriu: “Tirou os filhos do ex-Presidente das posições em que estavam, lutou contra a corrupção.”

Contudo, Lourenço “herdou um país já no meio de uma crise profunda” e o “modelo económico continua a ser à base de recursos naturais que beneficiam uma elite privilegiada”, diz à SÁBADO Justin Pearce, da Universidade de Sussex. Pedro Neto deixa um exemplo: “No Sul de Angola continuou a usurpação de terras comunitárias para grandes fazendeiros, ministros do governo local e provincial. A entourage do Governo continuou a dominar todos os bens e recursos.” Ou seja, adianta o diretor-executivo da AI Portugal, a “esperança” que o novo chefe de Estado trouxe em 2017 acabou por se traduzir, “na prática, em ilusão”.

Ainda assim, nota Edmilson Ângelo, esses primeiros tempos (chame-se-lhes de ilusão ou não) abriram as redes sociais aos angolanos – o próprio PR criou um perfil para se aproximar dos mais jovens. E são esses jovens a quem deu ferramentas para se expressarem online que agora saem em manifestações contra a brutalidade policial.

Duas realizaram-se em datas importantes: o 4 de fevereiro, que marca o início da guerra colonial e foi reprimida pela polícia a cavalo; e o 11 de novembro, em que se assinala a independência. Nesta última, um grupo de jovens subiu à estátua do primeiro Presidente, Agostinho Neto, colocando-lhe mensagens a favor da liberdade – o que deixou o MPLA ofendido. Já na sequência dos acontecimentos do Cafunfo, o bureau político do partido no poder emitiu um comunicado que “ninguém percebeu”, diz Abias.

Por um lado, o texto atira a responsabilidade pelas “assimetrias” em Angola – as mesmas que impeliram as gentes do Cafunfo para as ruas – “ao período de colonização portuguesa”. Não seria “realista e justo pensar-se que, em apenas 45 anos, os sucessivos governos (…) já deveriam ter feito a correção dessas assimetrias”. Por outro, refere o MPLA, as liberdades de imprensa, expressão, reunião e manifestação (uma verdadeira “abertura democrática que veio para ficar”, sublinha o texto) estão a “servir para promover o desrespeito à Constituição e a símbolos nacionais”, como o que ocorreu com a estátua de Neto.

“É um discurso de vitimização, mais uma manobra para encobrir a doença” de Angola e que “poderá levar a mais violência e mortos”, prevê Edmilson Ângelo.

Sara Capelo

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